domingo, 25 de novembro de 2018

Tio Maximino


Soa a marcha nupcial e Linda entra na igreja pelas mãos de Maximino, mãos que nunca lhe fizeram um carinho, porém ninguém melhor que o tio para conduzi-la ao altar.

Caminham pela nave a passos lentos. Tio nervoso e noiva calma. Quanto demoraria o percurso entre a porta de entrada e o altar? Continuam em câmera lenta, ao encontro do noivo.

Linda já não ouve a música do coro, do violino, do órgão; ouve somente a respiração nervosa de seu condutor, a mesma respiração que sentira aos sete anos quando o tio a levara de bicicleta, de Santo Cristo a São Cristóvão, para um passeio à Quinta da Boa Vista.

O tio pedalava ofegante do esforço. Ida e volta. E era maior a dificuldade de Maximino que tem uma perna mais curta devido à meningite que tivera em criança.

Tio Maximino não era de abraços e beijos, mas era quem Linda, menina, todos os dias, esperava chegar do trabalho para ganhar 10 tostões "pra comprar coca-fina", uma cocadinha com gosto de água sanitária que Linda adorava. Quando via de longe a sobrinha correr a seu encontro abria largo sorriso

Linda caminha leve pela nave. Neste momento os flashes de sua memória confundem-se com os das câmeras fotográficas.

Agora via o tio chegando com uma enorme caixa que colocou em seus braços, sem nada dizer. Ao abrir a caixa, um sorriso iluminou-lhe o rosto. Era uma linda boneca de louça, vestido cor de rosa, cabelos loiros em cachos.

Os pensamentos avançaram para seus dezoito anos quando uma bicicleta foi mais um presente inesperado. Era o jeito de declarar seu amor pela sobrinha. E Linda se sente agora pedalando pelas ruas de paralelepípedos.

Assim era ele. Fazia o bem, estava sempre presente, sem alardes.

E agora está ali, emocionado, atravessando o longo tapete vermelho, honrando o falecido irmão mais velho, conduzindo a sobrinha amada ao altar.

Antes de soltar seu braço, Linda olha agradecida para este homem que sempre lhe dedicou tanto amor e, só agora, percebe quão importante ele é em sua vida.

Suely Domingues Canero

sábado, 10 de novembro de 2018

Embriagado de Amor


Uma alma vaga sombria
Pelas praias de Cabo Frio.
De quiosque em quiosque,
Um trago.

E bebe só por pirraça
À mulher que, bem sabia,
Jogava ao lixo as cartas
Que a sonhar lhe fazia.

A saudade lhe doía
E em seu peito não cabia
Tanto amor que nunca passa
Que lhe dói e lhe corrói
E lhe consola a cachaça.

A onda traz a espuma
A água gela seus pés
Olha as mulheres da praia
Mas não encontrando aquela
Que lhe traz tanto sofrer
Pede ao garçom outra dose
Para a ingrata esquecer.




domingo, 21 de outubro de 2018

Sonho? Verdade?


As lembranças insistiam em me incomodar. Não adiantava tentar desviá-las do pensamento porque ele teimava em voltar ao passado. A saudade batia feio. Tentava me concentrar na carregada agenda que teria que cumprir, mas logo já estava longe, no Hotel Columbia, da Timbiras, onde sempre nos hospedávamos.  

Ora me via entrando no Colúmbia, ora aguardando o semáforo da São João com Ipiranga, sempre ao lado dele.

A vontade era a de voltar no tempo e viver tudo de novo. 

Deixar o pensamento solto, jantar no Rubaiyat, almoçar no Bar Brahma, andar na Paulista, visitar a Rua Augusta, onde Roberto Carlos entrava a 120 por hora.

Tanta coisa a se fazer em um fim-de-semana! Eram intensos nossos fins-de-semana.

Agora a saudade viera para remexer isso tudo, depois de tanto tempo...

Tantos anos se passaram desde a despedida e estou vivendo tudo de novo hoje, agora. Meus pensamentos me colocam lá, no passado. Estamos na esquina da São João para atravessar a rua e tomar um café.

Fazia sempre frio e aquele café quentinho, à noite, aquecia-nos o corpo e a alma.

A saudade está rondando a mente e apertando o peito. 

Começo a sentir intensa vontade de ir àquela esquina, àquele hotel. Ainda existiria?

No computador, à minha frente, o site mostra que o Columbia sim, ainda está lá, na Timbiras, igualzinho ao que era. Na tela as fotos mostram o interior dos apartamentos, tão conhecidos meus.

Interrompo a pesquisa e recosto-me no sofá para relaxar um pouco; só um pouco...

Vai crescendo a atração que SAMPA me impõe. A certeza vai tomando conta da dúvida. 

Já me encontro  pegando a pequena mala onde coloco poucas coisas, poucas mudas de roupa. Pegarei o ônibus das 18 horas na Rodoviária do Rio, como sempre fazia.

Pronto. Comprei dois assentos para que ninguém viajasse a meu lado. Encostei-me ao vidro da janela, com o rosto bem colado para ver o céu, a lua e as estrelas. 
Que sensação deliciosa! Se estava indo ao encontro do passado então teria que fazer tudo igualzinho.

Por volta de meia-noite cheguei à Rodoviária de São Paulo. O Colúmbia era perto dali, mas fazia-se necessário o táxi.

Cheguei. Deixei-me ficar na calçada por algum tempo e admirei a fachada do Hotel. Entrei devagar no grande hall. Queria saborear cada segundo. Olhava tudo e tentava reconhecer detalhes.

Eu estava no Columbia!

Apenas um jovem atendia por trás do balcão. Do lado de cá um senhor, debruçado sobre uma folha de papel, cumpria a formalidade da hospedagem.

Ao soar o meu "boa noite" ao recepcionista, o senhor virou-se rapidamente em minha direção.

- Jorge! - Balbuciei, incrédula.

Ficamos assim, imóveis, por alguns segundos até que, num impulso, nos lançamos para o melhor dos abraços: silencioso, apertado, demorado.

Quando conseguimos falar, Jorge contou-me do forte sentimento que também o impulsionara ao Columbia. Aquela noite seria curta para tudo que tínhamos a dizer.

Antes de subirmos ao apartamento, convidei-o ao famoso cruzamento das tradicionais ruas de SAMPA para o ritual do cafezinho, sob a garoa paulista.


domingo, 14 de outubro de 2018

A Maior Cantora do Brasil


A televisão chegou ao Brasil trazida por Assis Chateaubriand e começou a ser comercializada em 1950, porém poucas pessoas tinham poder aquisitivo para comprar o aparelho e, assim, era comum o proprietário de um desses deixar a janela da sala aberta para que os vizinhos pudessem assistir aos programas transmitidos na sua TV. Então as estações de rádio, o cinema e o circo ainda eram os principais meios de divertimento dos brasileiros.

Havia um cast de cantores e compositores famosos, alguns, poderíamos dizer, já cantando a sofrência, nome com que são chamadas hoje as músicas românticas e sofridas e que, na época, eram o samba-canção e o bolero.

O samba e as marchinhas de Carnaval faziam grande sucesso. Duas cantoras destacavam-se pela rivalidade entre suas fãs; Emilinha Borba e Marlene. Os animadores de programas de auditório Manoel Barcelos e César de Alencar aproveitavam o antagonismo delas para provocar aumento de audiência.

Chiquita bacana lá da Martinica se veste com a casca de banana nanica, cantava Emilinha enquanto Marlene entoava Lata d'água na cabeça, lá vai Maria... As fãs brigavam, enlouqueciam e gritavam para ambas: - É a maior!

Neste cenário surge uma nova cantora cuja maneira de cantar se assemelhava à da já consagrada cantora Dalva de Oliveira, a Rainha da Voz. No início da década de 1950 Angela Maria estourava com seus sambas-canções. Ela havia sido contratada pela Rádio Mayrink Veiga. Era sucesso após sucesso: Escuta, Recusa, Estava Escrito, Orgulho, Vida de Bailarina eram alguns títulos de suas gravações.

Angela Maria arrebatava logo à primeira audição. Eu ficava encantada com a voz de Angela, sabia as letras de todas as músicas, comprava os LPs e só tinha nove anos de idade. Colecionava a Revista do Rádio e a Radiolândia e tudo que se referia à cantora.

Em certa tarde de uma quarta-feira, fui com uma amiga à rádio Mayrink Veiga assistir ao programa onde Angela, a Sapoti, cantaria. Estava super empolgada. Sentamo-nos no auditório  e, aos primeiros acordes, me vi gritando - É a maior! - como faziam as fãs de Marlene e Emilinha.

Durante alguns anos pude ouvir seus discos a qualquer momento, mas... 

Nossa vida familiar sofreu grande mudança e a vitrola precisou ser vendida levando com ela as alegrias e o laser de uma adolescente solitária. Uma sensação de luto me envolveu então e nunca mais comprei long-plays de Angela. 
...
Descanse em paz, Abelim Maria, você nos presenteou com linda voz e interpretações magníficas durante sua vida inteira. Foi de grande importância o fato de você, mesmo escondida dos pais, participar dos programas de calouros, levando todos os prêmios até ser contratada pela Mayrink, estourar para o mundo e se transformar, por eleição popular, na eterna Rainha do Rádio e na Maior Cantora do Brasil.
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Notas:
.Getúlio Vargas, então presidente da República, apelidou-a "Sapoti"
.LP ou Long-play foi o disco de 33 e 1/3 rotações por minuto que substituiu o vinil de 78 rpmEra comum à época os animadores de auditório darem títulos aos cantores e cantoras. Francisco Alves era o Rei da Voz, Orlando Silva, o Cantor das Multidões, Silvio Caldas, o Caboclinho Querido... Era também comum os artistas mudarem o próprio nome por um mais adequado à carreira.
.Os apresentadores de programas eram chamados de animadores de auditório.

Suely Domingues Canero

domingo, 7 de outubro de 2018

Minha amiga Zó era uma "figura"

Nos velhos tempos da datilografia o final do texto trazia em caixa alta as iniciais do autor do trabalho e em caixa baixa as iniciais de quem o havia datilografado. Assim surgiu o apelido de minha amiga Zely Oliveira que marcava seu trabalho com suas iniciais.

Zely invadia minha vida a qualquer hora do dia ou da noite para contar um desabafo ou uma cena engraçada que se passasse com ela ou com outra pessoa.

Certa vez ligou-me às duas da madrugada porque se sentia angustiada. Conversamos um pouco e só quando desligou o telefone é que percebeu que não eram somente onze horas, como pensara.

Zely costumava dizer: "Gosto de contar as coisas para você porque só você acha graça". Ríamos de tudo e ríamos tanto que riam também os cobradores dos ônibus que nos levava a Copacabana, no final do expediente de trabalho.

Hoje, como em tantos outros dias, lembrei-me de minha amiga e, mais uma vez, dei boas risadas... sozinha.

Zely era muito desligada. Certa vez, passando pela Rua do Ouvidor viu uma cena onde duas mulheres brigavam por causa do marido de uma delas. Brigavam de se atracar. O público assistia, indiferente, a cena. Zely não contou tempo; segurou a que parecia esposa e desabafou: 
- "Não briga, minha filha, eu já passei por isso..." E foi assim que estragou a cena do filme Copacabana me Engana.

Havia coisas que, parecia, eram atraídas por Zely. Certo dia, em caminho para o Banco em que trabalhávamos, resolveu jogar no "bicho". Daí começou uma batida policial e o bicheiro agarrou-a pelo braço e saiu carregando-a, correndo pela Avenida Rio Banco. Ela, salto alto, dizia: "Me solta, moço, meu marido é tira". E o homem respondia: "Não solto; a senhora ainda não me pagou".

Quando Zó me contava essas cenas, ríamos de chorar enquanto nossos colegas apenas esboçavam um risinho de canto de lábios. Muitas vezes ela mal começava a contar um caso e não conseguia ir até o final da história pois gargalhávamos.

A cena do ceguinho não tem graça, levando em conta a deficiência, porém por mais que tentássemos, não conseguíamos segurar o riso. Frequentava o Banco um deficiente visual, que chamávamos de ceguinho mesmo, que adorava ser ajudado pelo sexo feminino. Ele usava uma bengala desmontável. Naquele dia Zely e o ceguinho, aproveitando o sinal aberto aos pedestres, atravessavam a mesma Rio Branco quando um homem grandalhão que vinha em sentido oposto, sem querer, tropeçou na bengala do ceguinho. O que aconteceu foi terrível! A bengala encolheu e o pobre ceguinho, magrinho, saiu "catando cavaco". E o grandalhão todo atrapalhado a querer evitar que o ceguinho caísse. Não tem graça, mas o conjunto da cena nos fez rir muito.

Ah, Zó, que saudade dessas maluquices nossas! Que saudade de sua invasão na minha vida, da sua falta de cerimônia quando me pedia ajuda, do seu socorro quando era eu que pedia ajuda. 

Ai, cara Zó, saudade de quando você mudou de departamento e seus colegas de trabalho, saudosos, brincavam dizendo: - "Voooolta, Zó"


Nota: Máquina datilográfica, precursora do teclado do computador
Caixa alta: LETRAS EM MAIÚSCULA
XXX/xxx - Identificava quem elaborou o texto e quem datilografou.

Suely Domingues Canero.

domingo, 30 de setembro de 2018

Sua Excelência o Professor Link

Sua Excelência o Professor Link         (Da série Avó anos 2010)

Sempre apoiei as reivindicações dos professores, classe desde sempre preterida pelos governos e pelos donos de colégios particulares, com ínfimos salários, bem aquém do que merecem.

Hoje começo a me questionar sobre o atual desempenho desses já não tão abnegados profissionais.

Venho acompanhando o currículo escolar de minha neta, auxiliando-a em seus estudos e, de certo, auxiliando a mim também, como estimulante da memória.

Semana passada minha pequena parceira teria prova e pediu-me:

- Vó, estuda português comigo?

- Claro, filha! Qual a matéria?

- Análise de orações.

- Mole. Sempre fui "fera". Sei muito. - me gabei - Cadê o caderno?

- Não, vó, é um Estudo Dirigido. Temos que abrir o computador. Achei esquisito mas concordei:

- Vamos lá, então.

Computador aberto, entramos no primeiro link. E lá está:

ESTUDO DIRIGIDO - Matéria da prova: orações subordinadas 
- Entre no segundo link para saber o que são.

Entramos, então, no segundo link e "aprendemos" o que são orações subordinadas.

Ao final, mais um comando: - Agora entre no terceiro link para ler o texto

Abrimos o terceiro link e lemos o texto.

- Agora entre no quarto link para resolver as questões.

Bom, o processo seguiu com perguntas sobre adjuntos, complementos, voz passiva e tudo aquilo que nossos bons e dedicados antigos mestres nos ensinaram dia a dia, passo a passo, aumentando, a cada ano, o grau de dificuldade, com tudo anotado no caderno e, a cada dúvida, nos era por eles esclarecida. Sempre tínhamos uma gramática da língua portuguesa a nosso alcance para reforçar o que os saudosos professores ensinavam-nos em aula.

A partir daí comecei a perceber que em todas as matérias se usava esse processo de deixar ao computador a função nobre de transmitir conhecimentos, função inerente ao profissional qualificado para a nobre missão do ensino curricular.

Comecei a me questionar: que raios de professores esses? Os alunos se tornaram autodidatas! O que leva um professor a abrir mão do sagrado dever de, ele mesmo, praticar a sagrada ventura de ensinar aos alunos?

Por que os mandar à escola se tudo aprendem através de robôs, representados por links?

Ah! Saudade de meus queridos mestres! Lembro-me de cada um. Da maneira como se movimentavam pela sala, da maneira teatral de um, do outro que escrevia completando todo o quadro negro com a matéria, das terríveis arguições orais de matemática quando a gente costumava se esconder atrás do colega da frente para não ser chamado a arguir... Tudo ficou no passado

O hoje é um robô chamado link sem o suave perfume que nos envolvia quando as professoras passavam entre nossas carteiras.

Suely Domingues Canero

domingo, 23 de setembro de 2018

Sua Bênção, Mamãe.


Estava eu com uns oito anos e morava em uma rua que começa em uma praça onde está a Igreja de Santo Cristo dos Milagres.

Naquela época havia a tradição católica de se fazer o sinal da cruz às 18 horas; era a "Hora da Ave Maria", momento em que se orava e as crianças pediam a bênção aos adultos. Todos os dias soavam as badaladas dos sinos da igreja indicando o momento consagrado à Virgem Maria.

No número 44, bem em frente à nossa casa, morava sozinha uma senhora discreta que não era de conversas com os vizinhos.

Certo dia começaram a aparecer à janela de sua casa, à tardinha, duas crianças; uma menina de minha idade e um menino menorzinho. Era o único momento do dia em que os víamos. Era-nos um momento muito comovente.

Ali ficavam à espera do badalar dos sinos e, mal começavam os primeiros toques, as duas crianças, à janela, gritavam:

- Abença, vovó. Abença, papai

E, num grito bem alto e prolongado, num grito para ser ouvido nos céus:

- Abença, mamãe

Sim, a mãe fora para o céu. Os pequenos vieram morar com a avó.

Aquele momento sagrado do dia era esperado com ansiedade pelo casalzinho de netos. Momento de soltar do peito o grito de dor e saudade. Momento em que, acreditavam, poderiam conectar-se com a amada mãe, que lhes ouviria e atenderia ao pedido de que os abençoasse. 


Suely Domingues Canero

sábado, 15 de setembro de 2018



Do outro lado da linha

"Alô - atende o homem.
- Posso falar com D. Sonia? - perguntou a adolescente que ligara para o telefone celular da mãe, já estranhando não ouvir sua voz.
- D. Sonia acabou de falecer..."

A menina sentiu uma pontada no peito com o golpe da notícia assim, à queima roupa. Desligou, de impulso, o telefone. Não queria ouvir mais. Juntou as poucas forças que lhe restavam para telefonar à irmã mais velha antes de cair inerte no sofá.

- Carol, um homem falou que mamãe morreu.
- Quê? Como? - perguntava a voz trêmula de Carol
- Vem pra cá - gemeu a caçula.
- Estou indo.

Os minutos antes da chegada da primogênita à casa da mãe pareciam séculos a ambas.
Como moram próximas, Carol fez o percurso a pé e acelerava o passo, descompassado pela agonia que sentia em imaginar a mãe morta.

Finalmente chegou à casa e, ansiosa, quis saber da irmã o que acontecera. Cris, com muita dificuldade, contou que telefonara ao celular da mãe e uma voz masculina lhe dera a notícia.

- E você não perguntou mais nada?

Não, Cris não perguntou mais nada. Não queria confirmar. Não suportaria.

Não choravam. O choque as desnorteara.
Enquanto Cris se deixava ficar paralisada no sofá, Carol telefonava a outros membros da família para conseguir notícias. Ninguém atendia.

A falta de contato lhes sugeria que era verdadeira a notícia e que os familiares estariam envolvidos com providências sobre a morte da mãe. As meninas reagiam diferente. Cris se deixara ficar abatida no sofá e Carol  buscava notícias.

O tempo ia passando e do telefone fixo não vinha qualquer informação. A falta de contatos estava desesperadora. Nem conseguiam coragem para tornar a telefonar ao celular da mãe. 

Onde estariam todos?

Os olhos da caçula vagueavam pelo cômodo. De repente, o olhar cai na mesa de centro da sala e ela grita:

- Carol! Olha isto!

O objeto para onde apontava estivera ali o tempo todo mas o desespero não as deixara ver.
Jogado sobre a mesinha de centro estava o aparelho celular da mãe.

Compreenderam que a chamada telefônica de Cris não fora para a mãe e que foram vítimas de um trote cruel.

Então as explosões de emoções puderam vir à tona. As irmãs puseram-se a pular a gritar a chorar de alegria e alívio. Era uma ressurreição milagrosa para as filhas que haviam rezado e feito promessas para que não fosse verdadeira a triste notícia.

Ansiosas, olharam à janela no justo momento em que Sonia chegava ao prédio. O sofrimento foi substituído por súbita felicidade. Desejavam abraçá-la, senti-la. E gritaram:

- Mãe, sobe logo.

Sonia não entendeu porque sua chegada em casa foi efusivamente festejada com abraços carinhosos e declarações de amor. Alegre e surpresa perguntava o que acontecera.

- Onde você estava, mãe? Perguntavam as meninas.

Sem saber da agonia pela qual as filhas passaram, respondeu bem humorada:

- No cabeleireiro, ora!


Suely Domingues Canero





domingo, 9 de setembro de 2018

Procura-se na rede 


No ano de 2004 um site da internet deixou os pais preocupados. Nascia uma rede social e a garotada estava animada com a possibilidade de contatar amigos e fazer novas amizades através do tal site que virou "febre" : o Orkut.

O Orkut era filiado ao Google e, embora o alvo fosse os Estados Unidos, a maioria dos usuários eram do Brasil e da Índia.

Curiosa, em dezembro de 2005, resolvi fazer parte daquela rede. Assim como os jovens, também buscava contatos de antigos amigos de escola dos quais sentia saudade.

Em fevereiro de 2006 já possuía um cadastro grande de colegas do curso ginasial, hoje fundamental II, e, posteriormente, em dezembro de 2008, já começava a recuperar também contatos dos amigos da Universidade Rural RJ que resultou em grande encontro em dezembro de 2009. Acabei apaixonando-me pelo antes misterioso site.

No Orkut se podia criar comunidades virtuais, ambientes particulares para usuários que tinham interesses comuns. Então, em 2013, na comunidade dos moradores da Gávea, deparei-me com a postagem de uma menina, Dani, que me chamou atenção.

Dani procurava pela avó, Francisca, mãe de seu pai, que não a conhecia, pois se separaram quando ele ainda bebê e, acrescentou, naquela época a avó trabalhara em uma pensão naquele bairro.

Sensibilizei-me e, querendo ajudar a menina, parti a perguntar aos comerciantes mais antigos se conheciam D. Francisca. Mas não conheciam a senhora e, menos ainda, a pensão.

Dani dizia na postagem que morava em Alagoas. Fazia referência também ao restante da família que, segundo sabia, morava na Paraíba em uma fazenda chamada Boqueirão.

Como minha pesquisa na Gávea não teve sucesso e como Dani colocara o nome da avó por inteiro, resolvi consultar a internet mesmo sabendo que a possibilidade de êxito era mínima.

Para minha surpresa, entretanto, de imediato encontrei uma nota onde outra neta procurava, a pedido da avó, a família que morava em Boqueirão.

"Minha avó, Francisca de tal, procura sua família da Fazenda Boqueirão, Paraíba, de onde saiu jovem deixando lá seus pais e irmãos. Moramos na Bahia. Quem tiver informações favor enviar mensagem para o e.mail tal."

Era coincidência demais para não se tratar da mesma pessoa. Fiquei muito animada e, com essas informações, tomei duas providências: A primeira foi informar Dani do e.mail da suposta prima para que pudesse colocar o pai em contato com a suposta avó.

Mas a segunda providência, não contei a Dani.

Escrevi à Paraíba contando da possibilidade de ter encontrado D. Francisca, parenta deles que não viam há muito tempo. No envelope escrevi como destinatários todos os nomes divulgados pela neta, portadora do pedido da avó na internet. Depois escrevi o nome da fazenda, da cidade e do estado.

Aguardei o telefonema e guardei o segredo. Na carta enviara meu número de telefone.

Enquanto isso, Dani entrou em contato com a avó através do e.mail da prima. Confirmaram que D. Francisca era mesmo sua avó verdadeira. Contava-me da felicidade do pai em re-encontrar a mãe, da reunião que a família teve quando sua avó veio da Bahia a Alagoas passar uns dias com eles. Até enviou-me fotos. Essas duas famílias não sabiam que ainda lhes aguardavam mais dias felizes...

Demorou um tempo antes que eu recebesse telefonema da Paraíba, mas quando veio foi uma explosão. Do outro lado da linha vozes eufóricas queriam falar comigo. A custo consegui explicar que eu não era da família e que somente estava querendo ajudar a juntar os parentes. Quando me deram fôlego, consegui passar-lhes o telefone da Dani. 

A suposta avó já não era mais uma suposição. Era a certeza. 
E podiam comemorar junto às irmãs de D. Francisca, lá da Paraíba, de onde saíra tão novinha e não mais voltara.

Por algum tempo Dani ficou minha amiga no Orkut, porém o furacão Facebook chegou ao país estourando sucesso e tivemos que dar adeus, em 30 de setembro de 2014, ao site que tantas coisas boas trouxe à minha vida. Despedi-me dele com melancolia.  E tive que me render ao novo site de relacionamentos.

O nome Orkut é originado no projetista chefe, Orkut Büyükkökten, engenheiro do Google.
Face book foi colocado no ar também em  2004
Datas pesquisadas na internet

Suely Domingues Canero






domingo, 2 de setembro de 2018



Coincidências existem?                        (Da série: Parece cena de filme)

Às vezes vemos uma cena de filme e pensamos: "Ah, só mesmo em filme acontecem coincidências dessas."

Mas a realidade pode nos pregar peças e trazer-nos coincidências reais iguais as irreais cenas de filmes.

Morando na Gávea, tinha o privilégio de ir ao trabalho em um ônibus que me atendia bem, pois me deixava na Av. República do Paraguai, bem próximo à entrada da empresa onde trabalhava. 

Certo dia de calor intenso, coletivo sem ar condicionado, a viagem vinha igual aos outros dias.
Os passageiros usavam envelopes, jornais, qualquer coisa que service de abano.

À altura do hospital Instituto Fernandes Figueiras, no Flamengo, entrou uma senhora com um bebê ao colo. Era uma menina. Poucos segundos após a partida, a senhora começou a gritar desesperadamente:

- Minha filha! Minha filha!

Olhando para a menina vi que estava roxa. Todos gritavam ao motorista:

- Para! Para!

Até que o motorista entendesse o que acontecia, já havia passado uma boa distância do hospital onde a senhora subira ao ônibus. Finalmente parou o veículo e a passageira, desesperada, desceu à calçada.

Eu pensava que aquela não era a coisa certa a fazer. Como aquela pobre mãe faria para retornar ao hospital? Como superaria aquela distância? 

Instintivamente olhei pela janela e vi que passaria por nós uma patrulhinha da polícia.
Coloquei meio corpo fora da janela e fiz sinal para que parassem.
De imediato os policiais saíram do carro, armas em punho. Olharam para mim como a pedir mais informações. Só consegui apontar para a dianteira do ônibus, pois a aflita mãe já descera em busca do nada.

Em poucos segundos os policiais colocaram-nas na viatura e, atravessando o canteiro central da avenida, partiu de volta ao hospital, a toda velocidade.

Nunca soube o que aconteceu àquela menininha, mas o providencial aparecimento daquele carro de polícia naquele exato instante e o meu impulso de rápida intervenção dão-me a esperança de que tenha recebido a dádiva da vida.


Suely Domingues Canero

domingo, 26 de agosto de 2018



Querida Arlinda

Arlinda era uma negra forte. Morava na favela e era empregada doméstica. 
Excelente cozinheira e ótima no trato com crianças.
Ganhava pouco e seu lar, podia-se dizer, era o emprego, pois as folgas eram quinzenais.

Quando, sem estar casada, emprenhou, contou à patroa. Não sabia se seria aceita com uma criança. Mas foi.

Empregada e patroa eram jovens. O filho de Arlinda, o quarto menino a chegar a casa, foi bem recebido.

A vida seguia. Arlinda tomou amor pelas crianças. O filho, tratado igual aos dos patrões. 

Arlinda amava aquela família. Incansável, servia sozinha grandes jantares nos dias comemorativos. Tinha ciúme de sua cozinha. 

Era a rainha da casa, depois da patroa. As outras empregadas que se comportassem,
senão lhes aplicava descomposturas.

As crianças passaram pela adolescência e ficaram adultas. Cresceram amando Arlinda e 
recebendo seu afeto. Vieram os netos. O tempo passando e ela ali permanecendo. A patroa perdeu um filho em acidente e Arlinda perdeu o seu para doença.

O chefe da família faleceu e os dois meninos da patroa casaram-se e saíram de casa.

Ficaram as duas sozinhas no casarão, passados 50 anos. Dormem no mesmo quarto para se ajudarem.

Duas velhas rabugentas que brigam. 
A patroa é braba, mas Arlinda a ama. Irmãs! Almas gêmeas!

Mais uma briga... A negra sai da sala e vai para seu quarto cantar. E se deixa ficar um bom tempo, de pé, apoiada na cômoda.

O criado vem chamá-la para o almoço. Uma lágrima rola em sua face, mas abre um sorriso.

Com dificuldade, as duas, patroa e a agora amiga, apoiadas nas bengalas, sentam-se à mesa.

A patroa percebe o olhar amoroso de Arlinda e lhe sorri.
E tudo fica igual porque o amor, de cinquenta anos, mostra-se mais forte. 

E amanhã... Amanhã será só mais um dia.



(Homenagem a uma mulher que muito admiro pela fibra e pela doçura)
Suely Domingues Canero




domingo, 19 de agosto de 2018

Gente amiga,
Hoje não postarei texto meu. Postarei a letra de uma música gravada por Luan Santana.
Essa letra me toca muito e fico admirada de como um rapaz tão jovem conseguiu inspiração para gravá-la.

"Te Esperando

Mesmo que você não caia na minha cantada
Mesmo que você conheça outro cara
Na fila de um banco
Um tal de Fernando
Um lance assim,
Sem graça

Mesmo que vocês fiquem sem se gostar
Mesmo que vocês casem sem se amar
E depois de seis meses
Um olhe pro outro
E aí, pois é,
Sei lá

Mesmo que você suporte este casamento
Por causa dos filhos, por muito tempo
Dez, vinte, trinta anos
Até se assustar com os seus cabelos brancos

Um dia vai sentar numa cadeira de balanço
Vai lembrar do tempo em que tinha vinte anos
Vai lembrar de mim e se perguntar
Por onde esse cara deve estar?

E eu vou estar
Te esperando
Nem que já esteja velhinha gagá
Com noventa, viúva, sozinha
Não vou me importar
Vou ligar, te chamar pra sair,
Namorar no sofá
Nem que seja além dessa vida
Eu vou estar
Te esperando"

Autor: Bruno Kaliman

sábado, 11 de agosto de 2018


Além da Boemia

Já aos treze anos, com a morte repentina do pai, Cesário se viu dividindo a chefia da família, de sete crianças, com a mãe.

Não se sabe em que momento o menino alto e magro transformou-se em um dos homens mais elegantes do país.

Sempre bem vestido, geralmente em ternos de panamá, cabelos rigorosamente penteados com gel fixador, sem um fio fora do lugar, e deliciosamente perfumado. O aroma misturava perfume e cigarro, numa combinação máscula.

Não poderia passar despercebido pelas moçoilas que lhe lançavam suaves suspiros e lânguidos olhares.

Era goalkeeper do time que fundou: o Atília Football Club. Ali conheceu a moça mais bonita que seus olhos já haviam visto; Mercedes, a madrinha do time.
Logo apaixonaram-se e casaram-se.

Mas Cesário era boêmio e Mercedes ciumenta.

As brigas eram constantes. Lágrimas corriam pelas faces da esposa ao lavar as manchas de batom nos colarinhos das camisas do marido.

Cesário queria chegar a casa e sentir na mulher o calor dos braços daquelas que encontrava na rua. Mercedes queria um marido que sentasse com ela à mesa do jantar. E brigavam.

Por seis anos brigaram e fizeram as pazes, antes da separação.
Chegara o fim das explosões, das lágrimas e das juras mentirosas.

Cesário partiu levando tudo que era seu. Menos um casaco, que permaneceu pendurado em um gancho na parede.

Enquanto ali ficou, Mercedes esperou sua volta.

Um dia ele veio, abriu a porta com a própria chave e, sem nada dizer, pegou o casaco e levou-o, saindo de vez do seu caminho.



O texto faz duas referências a duas das músicas temas dos personagens: Brasa – de Lupicínio Rodrigues e Saia do Caminho - de Custódio Mesquita e Evaldo Ruy.
Foto do time do Atília Football Club
Suely Domingues


domingo, 5 de agosto de 2018

Desafio


Denise caminhava olhando as vitrines da Rua do Ouvidor, no Centro do Rio.
Acabara de almoçar e curtia os minutos que ainda lhe restavam para voltar ao trabalho.

Era moça bonita, de baixa estatura. 
Vaidosa, aproveitou seu reflexo na vitrine para ajeitar os cabelos.

Ao virar-se esbarrou, sem querer, em uma mulher que passava na mesma calçada estreita.

- Desculpe - pediu Denise.

A criatura olhou-a raivosa e passou a agredir verbalmente Denise que ficou muito assustada, pois a tal mulher, de voz rouca e grande porte, cada vez mais se aproximava dela.

- Desculpe - repetiu.

Começou a juntar gente ao redor. Denise olhava em volta para ver se achava uma brecha escapatória.

A mulher aos poucos se aproximava dela, dedo em riste, já cutucando seu colo com o indicador, não se importando com o pedido de desculpas da já quase agredida.

- Por que não olha onde anda? - gritava a grandalhona

O pessoal que assistia a cena nada fazia: parecia divertir-se. O desespero foi tomando conta da baixinha que, já fora de seu juízo, empurrou para longe aquela massa disforme que estava à sua frente. 

A mulher desequilibrou-se e caiu de costas no duro piso.

- Ah! Vou te pegar, sua estúpida! - esbravejava.

Apavorada, Denise aproveitou a situação para furar o bloqueio humano e fugir, sob aplausos.
Quando já estava a dois quarteirões de distância, ouviu as vaias à sua algoz cujos impropérios dava para ouvir ao longe.

- Cadê ela? Ah! se a pego...

Denise estava envergonhada por passar aqueles momentos de alta tensão e, ainda sem saber como, conseguiu forças para caminhar rápido e livrar-se daquele cenário.
.
Ao entrar no escritório seus colegas, que também chegavam do almoço, comentavam o caso que já se havia propagado. Denise, então refeita, entrou no assunto dizendo:

- É, gente, eu soube disso. Parece que uma baixinha derrubou uma gorila.

E os amigos explodiram em gargalhadas da piada, sem imaginar que a colega era uma das personagens que protagonizaram a cena.

Denise disfarçou o sorriso e foi tomar seu posto de trabalho mantendo segredo sobre a aventura pela qual passara.



(este texto é resultado de um desafio proposto em curso livre de português - Com ele homenageio a saudosa amiga Zely)
Suely Domingues Canero.

domingo, 29 de julho de 2018

O Homem que eu quero 


Quero um homem que me tire as sandálias

E faça massagens nos pés para eu relaxar.

Que me esfregue as costas na hora do banho

E que me passe creme após eu me enxugar.

Que acarinhe minha cabeça

E me beije o rosto antes de deitar.

Quero um homem que me leve a jantar 

E que não me pergunte onde me levar.

Quero um homem disposto a conversar

Mas que silencie p'ra não me acordar.

Que me cubra os ombros quando o frio chegar.

Um homem que comigo dance, dance

E dance até eu me cansar.

Quero um homem que me abrace forte

Mas que beije devagar.


Suely Domingues Canero


domingo, 22 de julho de 2018

Ovo de Chocolate  - Afago na Alma          (Da série: Vovó Anos 1940)


Desde que a avó colocara o ovo de Páscoa que ganhara de uma vizinha na cristaleira, Linda ansiava por provar um pedaço daquele chocolate. Já o sentia derreter em sua boca e escorrer garganta abaixo.

Linda estava acostumada às delícias do bastão de chocolate roliço da fábrica Bhering, situada no bairro onde morava, com o qual roçava os lábios a fingir que era batom. Então ia sorvendo, aos poucos, a delícia daquele paladar que lhe despertava todos os sentidos. 

Por isso esperava ansiosa o momento em que vovó Carmen repartiria o presente tão fortemente guardado no móvel da sala.

Única criança da família, suas vontades eram todas satisfeitas e, assim, chegou-se à avó e perguntou:

- Vó, quando você vai abrir o ovo?

- Deixa o ovo quieto lá, menina. - Respondeu a velha espanhola.

Linda deixou o ovo quieto, porém em todos os dias corria à cristaleira para ver se ele ainda estava lá. Queria estar por perto quando a avó o abrisse.
Não abandonava a sensação de ir aos céus ao colocar o primeiro pedaço na língua.

Os dias foram passando, as semanas e meses também.  O ovo virou um enfeite permanente. 
Linda já se conformara e quase não se dava conta da presença dele.
Por que a velhota o expunha torturante no móvel de vidro? Por que não o repartia para que todos comecem um pedacinho que fosse? Para Linda aquilo não tinha sentido.

Certo dia o ovo sumiu e a menina correu à avó a perguntar:

Vó, cadê o ovo de Páscoa da cristaleira?

- Joguei fora. Mofou - Disse a velha.

Linda sentiu muita tristeza. Acostumada aos mimos da família, como a avó lhe negara um pedaço do chocolate do ovo? Por que deixou que se estragasse?
Amuada, sentou-se ao pé da escada que levava a cozinha ao quintal enquanto uma lágrima descia em sua face. Apesar de amar muito a avó não o poderia naquele momento.

Só a velha imigrante sabia o que representava para ela mesma aquele ovo de Páscoa. O doce que nunca tivera em criança, época de extrema pobreza. Não poderia reparti-lo. Ela ganhara, já na maturidade, seu primeiro ovo de Páscoa, seu primeiro doce, e quis prorrogar o prazer de tê-lo ganho, de estar feliz.

Olhou enternecida para a neta, porém, só aquela vez, não poderia ter mimado sua querida garotinha. Mas pôde convidá-la para o lanche da tarde que Linda adorava, aquele que as tornava cúmplices; uma xícara de chocolate quente.


Suely Domingues Canero - 2018

domingo, 15 de julho de 2018



Artes e Manhas da Vovó           (Da série Vovó Anos 1940)

- Vó, já tá seco?

- Não

Meia hora depois...

- Vó, já secou?

- Ainda não.

- Falta muito, vó? Tá demorando...

- Está quase...

O calor era intenso no bairro de Santo Cristo onde morávamos e, nas férias de verão, eu queria brincar na vila o dia inteiro com as amiguinhas da vizinhança; era difícil prender-me em casa. 

Minha avó materna, que cuidava de mim enquanto minha mãe trabalhava fora, já não sabia o que inventar para segurar-me um pouco. Contava histórias, fazia roupinhas de bonecas e estava sempre tentando ocupar-me. Mas avó não é coleguinha de folguedo e, por mais que se esforçasse, não conseguia substitui-las. Para que vovó entendesse isso, eu dizia chorosa:

- Eu queria uma irmã, pra brincar comigo.

Assim, enquanto não saía para as brincadeiras, eu não lhe dava sossego.

Foi aí que D. Amélia teve uma boa ideia. Como eu tinha um macacãozinho o qual adorava, vovó, com toda doçura, me convenceu de que essa roupinha era a mais apropriada para uso diário contra o calor e para isso teria que ser lavado todos os dias.

- Mas, vovó, vão pensar que eu não tomo banho se eu usar sempre a mesma roupa.

- Não, querida, ele vai ficar muito limpinho e você também.

- Mas vai demorar a secar... - choramingava

Concordei, afinal, e todos os dias acontecia o ritual. Pela manhã, o macacãozinho era lavado e colocado a secar na "corda" que, na verdade, era um arame comprido, suspenso por um bambu e que ficava no quintal, aos fundos da casa. Vovó me dizia que quando estivesse seco poderia vesti-lo e brincar com as amiguinhas. 

O tempo passava. O macacão torrava. O almoço era servido e também o lanche.

- Vó, tá demorando demais. - Já chorosa, lá pelas três da tarde, sentadinha à soleira da porta de casa.

Por volta das cinco horas, sol quebrando, vovó anunciava que, finalmente, o pequeno traje, o mais fresco do mundo, estava seco.

Então eu tomava meu banho na bacia de alumínio que vovó pusera com água ao sol a esquentar e, vestida com meu macacãozinho, saía feliz às brincadeiras, sem adivinhar as artimanhas da vovó Amélia para prender-me em casa. 


Obs.: Muitas histórias tenho com minhas avós e muitas delas aparecerão aqui.

Suely Domingues Canero














domingo, 8 de julho de 2018


"Filha Única"


Quero uma irmã pra brigar, pra reclamar, 
mas que me socorra na hora em que a dor pintar.

Quero uma irmã pra ter ciúme, pra arrasar,

mas que me proteja se alguém me machucar.

Quero uma irmã pra pegar meu vestido favorito

e usar... sem me consultar.

Quero uma irmã pra conversar e pra fofocar,

que me abrace pra me confortar

e que sinta meu abraço quando precisar.

Quero a autenticidade, a troca,

a cumplicidade no olhar.

Quero aquela pessoa que 

venha tirar o tédio que chega sem anunciar.

Quero uma irmã verdadeira 

com mistura de DNA.


Suely Domingues Canero  (Em memória de Suelem)








domingo, 1 de julho de 2018

Um dia com a vovó        - Anos 2010

- Querida, arrumou a pasta?

- Mochila, vó.

- Leva os cadernos?

- Não, vó, levo o tablet

- E o passe do ônibus, está levando?

- Bilhete, vó. Tô levando.

- Por que você não está de uniforme?

- Não precisa, vó.

- Mas esse short está curto.

- É assim que se usa, vó.

- Ah, e a merenda?

- Lanche, vó. Compro lá.

- 'tá bom, precisa de dinheiro?

- Não, vó, tenho cartão do banco.

- Tchau vó. Da escola vou pro shopping com minhas amigas, tá?

- Avisou à sua mãe?

- Não, vó. Avisa pra ela?

- Tá, querida. Lembra de ligar pra casa. Está levando o celular?

- Tô, vó. Te mando um whatsapp, ok?

- Ok, querida. Tchau.


Suely Domingues Canero

domingo, 24 de junho de 2018

O Primo Bil


O menino nasceu num dia 20 de janeiro e ganhou o nome de Sebastião em homenagem ao santo do dia. Era tão franzino, tão branquinho. O forte nome não lhe caía bem e a irmãzinha tinha dificuldade em pronunciá-lo e logo surgiu o apelido de Bil.

Ainda não completara um ano de idade quando os pais, muito jovens, foram presos. Comunistas, foram pegos na militância. A mãe estava com tuberculose e não demorou a morrer na cadeia. Do pai as informações eram de que se suicidara. Ficaram duas crianças órfãs.

A mais velhinha logo foi adotada por uma tia que a criou apenas para que lhe servisse de empregada. O menino virou um fardo para os parentes e passava de casa em casa, de mão em mão.

Bil foi crescendo assim, sem raiz, sem passado, com presente incerto e futuro muito mais. Frequentou pouco a escola.

Quando o conheci morava com meu avô materno e sua esposa Andreza, negra que fora empregada da família e que nunca deixou de chamar meu avô de "seu" Arthur. Andreza era apenas mais uma pessoa que maltratava Bil. Não lhe tinha um gesto de carinho e só vivia mal humorada.

Um dia Bil foi levado à minha casa em Santa Teresa e mamãe anunciou que ele moraria conosco um tempo. Acredito que Bil finalmente foi feliz nessa época. Pre-adolescentes em férias, brincávamos o dia inteiro subindo na mangueira para chupar mangas, sentados nos galhos da árvore que ficava no quintal. Construíamos telefones com latas de leite condensado, ouvíamos discos e tentávamos adivinhar qual o ritmo da próxima música que tocaria no LP colocado no prato da vitrola.
Também íamos ver as "chanchadas" nacionais em algum cine da Cinelândia.

Um dia vi o Bil arrumando a sacola com suas roupas. Imaginei o que estaria acontecendo; Bil iria embora de mais uma casa.

Olhei para meu primo e para sua sacola já pronta. Eu queria dizer que não fosse, mas sabia que não adiantaria.

As lágrimas não rolaram em seu rosto nem no meu, mas meu coração chorou por mim e por aquele menino bom, respeitoso e que iria para uma nova casa porque lar ele nunca teria.

"Nossa" mangueira".
Suely Domingues Canero
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segunda-feira, 18 de junho de 2018

O Bairro das Professoras

Nos anos de 1950 e 1960, o sonho de toda mãe era ver a filha com o uniforme do Instituto de Educação, também chamado de Escola Normal, o que queria dizer que a moça sairia dali formada em professora, com emprego público garantido, além do que era considerada a mais feminina das profissões e a mais bem aceita pela Sociedade.

As normalistas tinham uma postura ereta e orgulhosa usando o traje azul e branco, eternizado em uma canção popular.

A maioria das meninas morava na Tijuca, onde se localiza o Instituto, porém poderiam vir de vários pontos da cidade. Assim, muitas daquelas professorinhas casaram-se com algum menino do Colégio Militar - o segundo sonho das mães - e continuaram a residir no mesmo bairro.

Gosto de ir à Tijuca. Aprecio as senhoras que, como donas do pedaço, passam majestosas pelas calçadas da Praça Saens Peña. Algumas vêm em pequenos grupos. Suas roupas assentadas, cabelos cuidadosamente penteados, maquiagem discreta e aquela postura única das antigas normalistas.

Na terra das professoras, no meio da tarde, sentada no shopping Tijuca enquanto espero minhas amigas para um lanche de reencontro, identifico e aprecio as senhoras que passam pisando firme, queixo erguido, no ambiente que lhes pertence.

E me dá uma saudade!


Suely Domingues Canero

quarta-feira, 13 de junho de 2018

Velhinho é uma ova.

- Velhinho é uma ova!

E ele tem razão. Aos oitenta anos tem uma energia de dar inveja. Passa as noites escrevendo memórias que resultam em livros maravilhosos, pois entremeia fantasias com lembranças, fascinando os leitores.

Sou fã de sua juventude, de seus contos e da vitalidade irrequieta.

Ficaria contando as peripécias desse "velhinho" por dias e dias. Escolhi contar uma delas  aqui.

Num dia qualquer desses de travessuras, meu amigo Amauri solicitou ao filho que lhe fizesse um vídeo para que divulgasse seus livros, via internet, junto aos amigos. O ator seria o próprio Amauri.

Para criar um clima familiar, antecedendo a filmagem de divulgação, Amauri começa o vídeo ensinando como fazer um cafezinho. O vídeo fez muito sucesso entre o círculo de amigos, pois inovador.

Animado, Amauri voltou a solicitar ao filho que lhe fizesse outro vídeo. Desta vez, ao invés do cafezinho inicial, o comercial terminaria com nosso querido escritor memorialista brindando o público com uma pequena dose de cachaça.

Sua mente, sempre trabalhando na criação de histórias, não poderia fazer um comercial qualquer; tinha que ser criativo.

O filho prontamente atendeu e fez a gravação inteira, porém, herdado o temperamento jovial do pai, fingindo avaliar a parte final do clipe, disse-lhe:

- Vamos repetir, pai. O final não ficou bom.

E a cena da tomada final em que Amauri brindava ingerindo a cachacinha foi repetida algumas vezes. A cada tomada que se seguia nosso querido "velhinho" mostrava-se mais alegre e risonho, dando para perceber ao público que o querido amigo estava ficando meio "alto".
A gravação foi postada na íntegra, com as repetições sem cortes, o que a fez ficar ainda mais divertida.

Com esta história não só homenageio meu amigo como levo aos leitores seu exemplo de energia, coragem, criatividade, não importando a idade.

Velhinho? Velhinho é uma ova!


Suely Domingues Canero
Homenagem a Amauri Rodrigues, von Steisloff






terça-feira, 12 de junho de 2018

Bakas e Barriga


Era dezembro de 2009 e estaria acontecendo um grande encontro de ex-alunos dos anos 60 na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Meus dois amigos, quase 8.0, vieram para a reunião com dois dias de antecedência para curtir um pouco a cidade. Bakas partiu de Floripa e Barriga das Alagoas e, no Rio, encontraram-se. 

Dias antes, Barriga me telefonou dizendo que dividiriam um apartamento em um hotel no Catete. 
Ao me anunciar o preço da diária, muito barata, tentei argumentar que ficassem em quartos separados para que tivessem maior privacidade, mas os dois antigos colegas do curso de Agronomia estavam decididos e hospedaram-se no mesmo apartamento.

Não precisaria de bola de cristal para adivinhar o que aconteceria; os meus queridos turrões, viviam a discutir por qualquer motivo.

Procurei organizar passeios com eles envolvendo outros amigos que também haviam chegado com antecedência ao Rio de Janeiro. Assim, fomos parar na Estudantina, famosa gafieira que ficava na Praça Tiradentes. Enquanto nos divertíamos, os dois amigos deram tréguas às rabugices.

Para nossa surpresa, à nossa saída da Estudantina, uma chuva torrencial desabava.
Bakas e Barriga começaram as discussões sobre a estratégia de se conseguir um táxi. Ficaram zanzando na praça Tiradentes, para lá e para cá, na chuva. Eu, de saltos altos, atrás deles como uma barata tonta. Nem me ouviam. 

Após algum tempo, conseguimos um taxista, que deve ter se apiedado dos três velhinhos ziguezagueando sob o toró. Ainda bem que meus amigos não pintam os cabelos e a cabeça branca deve ter comovido o motorista.

Ah! No carro, finalmente! - pensei aliviada.

Mas o provável aconteceu a seguir: os dois continuaram discutindo sobre o melhor lugar para se  conseguir táxi. Já era demais! Instintivamente ordenei:

- Vocês dois, parem! Parecem crianças!

Silêncio... os dois calaram-se.

Deixei-os no Catete e segui para minha casa, na Gávea.

No dia seguinte, já no ônibus que nos levaria à Universidade Rural, soube que separaram  os quartos. Mas já estavam de pazes feitas, pelo menos até a próxima ranhetice.

-//-

Homenagem aos meus amados amigos Geraldo e Alberto (este in memoria)

Suely Domingues Canero

segunda-feira, 11 de junho de 2018

Brilhante, o Bar.

Brilhante, o Bar

Assim que ficou pronto o edifício 53 da Avenida Rio Branco, os benedenses, como são carinhosamente chamados os empregados do BNDES, foram transferidos da Rua Sete de Setembro número 48 para a nova sede, que fazia esquina com a Rua Visconde de Inhaúma, onde existia o Bar Brilhante no qual fazíamos pequenos lanches à tarde, aproveitando os 15 minutos que o Banco nos concedia.

Os mais antigos funcionários hão de lembrar-se do Brilhante, assim como do sapateiro administrado por um casal de jovens irmãos que assumiram o controle após o falecimento dos pais. Depois, já maduros, instalaram-se no Edifício Avenida Central e continuaram atendendo ao pessoal do BNDES.

Mas voltando ao Brilhante, os empregados nos conheciam, assim como já estávamos acostumados com suas presenças nos atendendo.
Certa tarde dirigi-me ao balcão para solicitar meu lanche a um atendente novato.

- "Mil folhas, por favor" - Solicitei.

O funcionário pegou um monte de guardanapos e começou a embrulhá-los. Estranhei sua atitude e perguntei-lhe:

- "O que está fazendo?"

- "A senhora não pediu 1000 folhas? Estou embrulhando..." - Respondeu ele.

Arregalei os olhos e, com sorriso complacente, apontei o doce exposto na vitrine.

Até hoje, todas as vezes que saboreio meu doce preferido, lembro-me daquele garoto recebendo as gozações de seus colegas de equipe.


Suely Domingues Canero
Ah! Gerações...


A cada década aparecem gírias; umas permanecem, outras não.
Assim, se um adolescente de hoje pudesse ouvir o diálogo de um grupo de jovens dos anos 60 provavelmente não conseguiria entender muita coisa, como aqueles - do grupo onde me incluo - nem sempre conseguem entender os dialetos dos jovens de hoje.

Dizíamos: "Aquele pão está flertando comigo. Ele é o tal."
Traduzindo: Aquele rapaz bonito está me paquerando. Ele é o máximo!

Dizem os jovens hoje. "Vou abalar com esta beca. Vou sair passando o rodo."
Traduzindo esta também: Vou fazer sucesso com esta roupa. Vou namorar todas as meninas.
Aliás, segredando, hoje não se namora: se fica.

As minas já foram uvas, brotinhos, pedaços de mau caminho, a nora que mamãe pediu...

Uma brasa era elogio e bicho poderia ser o amigo ou coisa ótima: "é o bicho, cara".

O que fez meu pensamento levar-me àqueles anos dourados onde os brotinhos flertavam, ficavam gamados e tinham dor de cotovelo foi um simples diálogo em que acabei me envolvendo e que terminou em boas risadas.

Estava eu animada naquele domingo, esperando que minha neta resolvesse - finalmente! - ajudar-me com meu canal do youtube enquanto aguardava o término da conversa que rolava entre ela e a mãe. De repente a mãe diz, concluindo o assunto:

- "Depois a gente bate um papo sobre isso"
Ao que minha neta respondeu:
- "Bate um papo!? Que é isso?"

Foi aí que, querendo ajudar, aconteceu minha trágica intervenção;
-"Dá um plá!" 

Viram as duas para mim, filha e neta, e me olham com caras aterrorizadas. Seria eu um ET?
- "Dá um plá?! Que é isso?"

A risada foi geral porque entrou uma vovó "anos sessenta" no caminho e aí... não deu pé.
A mistura Anos Sessenta mais Anos Oitenta mais Anos Dois Mil... complicou geral...

Quase dei no pé e só não entrei pelo cano porque fui salva, numa boa, pelo Google. O "plá" está lá, para quem quiser conferir.


Suely Domingues Canero