quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

E se Chegasse Alguém?

 Todos os dias ela acorda e arruma a casa. Nada fica fora do lugar. Pias sem louças para lavar, varal com as roupas limpas penduradas, pisos totalmente varridos, cama bem feita... Até sua bolsa pessoal ela arruma. Sempre pensando que se chegasse alguém exibiria, com orgulho, sua disciplina.

Como se fora a Bela Adormecida, espera alguém que a venha despertar dessa rotina. 

- Ela está em seu castelo, olê olê olá...

Seguindo o hábito, toma banho, arruma-se e maquia-se levemente. Se chegar alguém estará arrumada, tal e qual seu lar. Se tiver que ir a qualquer atividade fora de casa, já estará devidamente pronta.

De segunda a sábado, os compromissos bancários, compras, academia enchem seu tempo. 

A geladeira não pode ficar vazia. Está sempre abastecida, pois se chegar alguém terá o que oferecer. Assim passa a semana. De segunda a sábado. 

O relógio acelera o tempo.

- O tempo passou a correr, a correr, a correr

De vez em quando o interfone toca e, qual cavalo galopando, ela corre a atender. Logo a decepção, pois, via de regra, é o porteiro avisando que fechará a coluna de água.

Domingo. Ah! O domingo! Chegado o domingo, que já fora no passado remoto o dia das famílias e amigos se visitarem segue a rotina na esperança de a campainha tocar anunciando a chegada de alguém.

- Mas o muro é muito alto, olê olê olá

À tardinha, já cansada da inércia, torce para a segunda-feira chegar rápido.

Sob as cobertas, de pijama, abraçada a seu cachorrinho, desistindo dos programas bobos da TV, dá a última olhada do dia nas redes sociais. Muitos desejos de coisas boas, muitas figurinhas bonitas, muitos abraços e beijos... muitos. Onde estão esses mensageiros do rei? Quanta solidão escondem atrás dessas mensagens?

O sono chega e ela se prepara para, na segunda-feira, começar tudo de novo.

Quem sabe alguém chegará de surpresa? Quem sabe?

- Adormeceu a rosa assim, bem assim, bem assim...

Sem galope, sem campainha, nenhum rei ou rainha para o toque dos lábios, para o abraço aperdado.

- O mato cresceu ao redor, ao redor, ao redor...

Suely out/2020


 

 Luto e Luto


Luto. Luto contra o luto.

Não tenho lágrimas para chorar as minhas perdas,

Meus amores, meus CDs com as músicas preferidas

Meus vídeos VHS...

As novas tecnologias vão-me tirando a intimidade com os aparelhos.

Desisto de ouvir Betânia, Tânia Alves, Roberto, Conniff.

Desisto de ver meus vídeos.

Desisto de gravar programas. Tudo mudou.

Tevê faz tudo: grava, programa...

Tudo muda tão rápido!

E eu já não faço nada. Desisto de aprender.

E lutar para aprender depressa é uma luta!

Estou em luta.

Luto pela perda do carro que abandonei por puro medo de assalto.

Luto por ter perdido meu médico que se rendeu à doença.

Luto pelo meu fiel salão de cabeleireiro que se mudou.

Pelo restaurante que muda sempre o garçom e lá vai embora aquele que me servia tão bem.

Luto pelas crianças que tinha em casa e, adultas, vão seguindo seus rumos.

Luto para ir à academia. Luto por não ter ido.

Luto pelas amigas que se foram.

Luto pela saudade que sinto de mim.

Suely - 2020



 Mindó.

Ali, pelos meus oito anos, tinha um amigo chamado Mindó. Só o conhecia pelo apelido pois nunca soube seu nome verdadeiro. 

Houve uma época em que eu ficava sozinha em casa, pois minha mãe precisou trabalhar fora  uma vez que as costurinhas que fazia para as freguesas já não eram suficientes para o suprimento total da casa. Eu precisava ficar sozinha.

O meu dia era dividido: ora estava à janela vendo o movimento da rua, ora na loja de consertos e alugueis de bicicletas de propriedade de meu padrinho, na mesma rua. Era aos fundos dessa loja que ficava a casa de Mindó. 

Mindó era filho de "seu" Manduca que no verão businava às seis horas da manhã chamando a vizinhança para ir, em seu caminhão, à praia do Caju para um mergulho antes do trabalho.

Nessa época Mindó era meu melhor amigo pois, ou estávamos na loja ou ele estava pendurado fora de minha janela a conversar comigo. Não sei do que tanto conversávamos pois ficávamos horas a matraquear e ele pendurado na janela. Nossa amizade iniciara  após uma briga nossa no meio da rua. Fomos separados por um policial que ia passando e nos deu uma boa bronca. 

Certo dia notei o olhar assustado de Mindó. Pendurado na janela ele via o interior da casa. Seu olhar se fixava sobre meu ombro. Instintivamente olhei para trás e vi, na cozinha, apenas a perna de um homem em fuga.

Abri rapidamente a porta de acesso à rua e corremos para a loja de meu padrinho contando num só fôlego o que acontecera. Meu coração aos pulos. . A vizinhança, em polvorosa, entrou em casa para pegar o sujeiro que, provavelmente, escapuliu pelos telhados. 

À noitinha, quando minha mãe chegou em casa, contei-lhe a história toda. Numa de detetive ela perguntou:

- Qual era a cor da calça do homem?

- Preta, listrada. Respondi.

Mindó também foi "convocado" para outro interrogatório. 

- Qual era a cor da calça do homem? Perguntou minha mãe a Mindó.

- Preta, listrada. Respndeu ele.

Grande alívio senti, pois até eu já duvidava do que tinha visto da invasão da casa pelo estranho.

Isso já vai bem longe: do tempo em que se amarrava cachorro com linguiça, como pregava minha madriha. 

Nada se fez. Nossa vida continuou normal e Mindó continuou pendurado em minha janela durante uns bons anos.

Suely 2020

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

 Natal chegando; Curta Biografia

Nesta época do ano costumo fazer uma retrospectiva em minha memória e me dá vontade de estar perto dos amigos, abraçá-los e dizer de sua importância. O clima natalino propicia isto.

Viajo pelo meu Santo Cristo, entro no Instituto Guanabara, passo por Santa Teresa, parto para a Universidade Rural e entro no BNDES.

Do Santo Cristo, a doce infância: do Atília FC, do Fala meu Louro, das avós e dos primos.

De Santa Teresa, a adolescência, a bossa nova cantada na mureta da rua com amigos. De mãe, mulher avançada para a época, liberal

Do Guanabara, as fotos com amigas que ainda trago ao redor em encontros barulhentos de alegria. O velho hino do Colégio, sempre relembrado e desafinado. São as meninas IG que tanto amo.l

Rural, dos capagatos, dos verdureiros e das patiobas (ou pica couve), apelidos dos veterinários, agrônomos e meninas do curso de Economia Doméstica onde adotei amigas-irmãs.

Sem deixar esta herança toda para trás, ao contrário, trazendo-a sempre de volta, os concursos para o BNDES, galgados por seleção pública, onde passei 29 anos e fiz muitos amigos.

As redes sociais foram muito importantes para o resgate de algumas e para conquista de novas amizades.

Finalmente, a turma do 96, ou turma da Gávea, e o Bloco A Rocha. Pensaram que eu não lembraria de vocês?

Não poderia abraçar a todos. Posso, entretanto, desejar-lhes o Natal cheio de esperança. Esperança em que possamos abrir os olhos e acordarmos em um mundo melhor onde possamos abraçar, de fato, corpo a corpo sentindo o cheiro peculiar de cada amigo.

Suely - Dez.2020



 Vazio

O sol entrava pela janela,

As crianças, pela porta.

O sol iluminava a casa

As crianças, o rosto dela.

Os guris cresciam,

O Sol os toldos escondiam.

O tempo passava e ninguém via.

Só de repente, muito de repente,

A consciência de que as crianças cresciam

e seus rumos definiam.

Ela olhando o sol batendo na janela

E não mais nela.

Acabaram os folguedos alegrando a casa

Onde já não se vê brinquedos...

Todos saíram e ela, triste, sente

A saudade que agora bate nela.

Suely - 30/12/2020


sexta-feira, 31 de julho de 2020

Sou Jovem

Conversava eu em uma sessão com meu psicanalista quando ele me perguntou, a propósito de meu comentário sobre envelhecer:
- Quando você percebeu que tinha envelhecido?
- Quando me olhei no espelho e não me reconheci. - Respondi

O psiquiatra ficou calado por instantes como se estivesse a vagar no espaço. Teria ele também sentido o peso do botão que fazia transformar o novo em o velho?

Eu acabara de completar setenta anos e, de uma hora para outra, as pessoas passaram a chamar-me "senhora" e a oferecer-me assento no metrô. Assim, de estalo, tudo junto como se setenta anos fosse o limite da juventude, que ainda se pudesse ter, e a velhice.

Não é fácil encarar esta pessoa que me é acabada de ser apresentada. Como conviver com a pálpebra caída, lábios não tão bem delineados, nariz que não para de crescer e ainda o desconfortante papo sob e queixo?

Passei a usar mais produtos de maquiagem como jamais havia feito. Não sei se fico ridícula, mas, se for para trazer um pouco de cor ao rosto, já me alivia.

Aprendi que para desligar-me da feiura dos efeitos das rugas devo usar três regras:

Visto roupas que valorizem o corpo ainda razoavelmente bem feitinho; uso o intelecto, o qual sinto infinitamente jovem, trabalhando minha capacidade de trazer velhas memórias e perpetuá-las em  livros e crônicas e, em contrapartida, uso vividamente as novas mudanças que o mundo me apresenta. A terceira regra é evitar o espelho para que a moça que está dentro de mim atue permanentemente.

Concluo, neste meu analisar, que ser velho não é ter marcas no rosto e no corpo. Enquanto estou debatendo temas, argumentando, resolvendo problemas, criando e realizando projetos... sou jovem.

Suely Domingues Canero
31 de julho de 2020

quinta-feira, 9 de julho de 2020

A Lágrima que Não Cai


O choro nem sempre vem acompanhado da lágrima.
Quando vem do olhar perdido, do soluço contido ou da dor da alma dilacerada, ele nos traz a angústia de um passado sofrido, de um presente bandido ou de um futuro indefinido.

Ele nos toma de assalto onde quer que estejamos; basta que nos lembremos de um menosprezo, de uma ingratidão, de uma traição... Tão doído!

A lágrima não rola porque aprendemos a segurá-la, numa necessidade de enganar o mundo que não quer saber de tristezas ou incertezas.

E seguimos chorando, olhos secos, para que não nos desnudemos aos olhos de pessoas que nem estão interessadas.

Suely Domingues Canero 2019

sexta-feira, 10 de abril de 2020


Ah! Minhas avós!

Minhas avós eram criaturas muito especiais para mim. Eram esquisitas mas me eram muito queridas.
Começava pela religião quando, ali pelos anos 1940, era proibido o culto espírita. 
A avó materna, Amélia, recebia os caboclos e pretos velhos em casa mesmo. E jogava búzios. Ah! E fazia pontos para melhorar a vida da clientela.

Já a avó paterna, Carmen, me levava para as sessões espíritas, num sobrado, cuja localização não sei dizer onde ficava,  e eu  amedrontada imaginando que a polícia chegaria a qualquer momento prendendo todo mundo.
Eram meio bruxas, diferentes das avós de minhas amigas,  mas isso era incorporado  com naturalidade por mim.

Hoje, não sei se é porque é Sexta-feira Santa, lembrei-me do hábito que minha avó paterna tinha de ir a velórios e enterros.
Todos os dias após o almoço gostava de pegar um ônibus em seu bairro, ir até o ponto final e voltar a casa.

Às vezes essas voltas eram substituídas por visita ao jazigo da família, no Cemitério do Caju, no Rio. O jazigo fica no final do cemitério e tínhamos que atravessar aquelas alamedas todas. Digo tínhamos porque ela aproveitava qualquer neto que estivesse disponível para acompanhá-la nessas aventuras. Sorte dela que os netos aceitavam fazer-lhe companhia e hoje temos essa história em comum para contar a nossos descendentes.

Vovó Carmen não perdia um enterro. Primeiro os velórios eram feitos nas próprias casas, incluindo dos filhos que vovó perdeu. Tempos depois já se faziam os velórios nas capelas do próprio cemitério. E vovó estava lá para cumprir a solidariedade com algum vizinho que perdera um ente querido.

Certo dia minha avó resolveu ir sozinha a um velório pois não havia neto disponível.
Foi lá, levantou o véu que cobria o rosto do falecido, sentou-se em um banco e começou a observar os presentes. Não reconheceu qualquer que fosse familiar do morto. Passado um tempo, decidiu confirmar com alguém o nome do falecido e quase caiu dura ao perceber que estava no velório errado. Já passara da hora do enterro do defunto certo e ela voltou frustrada para casa.

Triste por não ter cumprido o dever solidário com os vizinhos, contou aos filhos o que acontecera, lamentando-se muito.

Ao contrário do apoio que pretendia dos filhos, recebeu muita risada. Daí para a frente meus tios não pararam mais de relembrar essa história e ainda acrescentavam à brincadeira a informação de que todos os dias ela pegava o obituário dos jornais procurando onde seria o próximo velório a levar os pêsames.

abril2020Suely

sábado, 28 de março de 2020

Coroa de Espinhos

A ordem era clara: todos trancados em suas casas.
A cidade parou, o país parou, o mundo parou.
O que estaria havendo?
Todos perplexos! O brasileiro estava incrédulo.
De repente, todos teriam que se enclausurar dentro das própias casas.
O país iria fechar: aulas, comércio, transportes de carga e transportes urbanos.
Só serviços essenciais funcionariam. Surreal!

Chegava ao Brasil uma gripe cujo agente provocador tinha a forma de coroa.
Era o coronavírus, uma nova espécie de gripe que poderia ser mortal.
A segregação era importante para não transmissão da doença.

Alguns lembraram-se de ouvir falar na gripe espanhola que aconteceu em 1918.
Muitos questionavam se eram verdadeiras as histórias terríveis que se contava sobre os efeitos daquela gripe avassaladora.
Sim, eram verdadeiras. Ainda muito pequena ouvia de minha avó, imigrante espanhola, que os corpos dos mortos eram atirados nas calçadas pelas próprias famílias para aguardarem uma carroça que os viria recolher.

Eu mesma passara por uma experiência horrível em 1957 com a gripe asiática, gripe pouco comentada, quase esquecida, mas que foi terrível.

Estava  na escola quando me apareceram os sintomas. Levada à Diretoria pude encontar outras alunas na mesma situação. Daí a pouco os pais foram chegando para pegar as filhas.
Diagnosticado o problema pelo médico, a receita era limonada. E o limão... sumiu do mercado.
Quase morri. Queimava em febre. Não comia. Fui salva pela sopinha que minha avó Amélia me deu em colheradas na boca e pelas cocadas dos santos Cosme e Damião que meus primos ganharam no dia 27 de setembro daquele ano.

Estamos agora em 2020, março. Por causa da coroa, confinados em nossos próprios castelos.
No início, sensação de liberdade. Ninguém me poderá solicitar nada. Estarei livre só para mim.
Mas o isolamento demorado traz a angústia, a ansiedade. Ainda mais quando se está em situação de risco. Enclausuramento total para os idosos e doentes crônicos e severos. Esses correm maior risco de morte.

Quanto tempo vai durar esta prisão? Que mundo encontraremos lá fora? Dizem que estamos nos purificado, que forças espirituais estão agindo. E eu lembro: Só os bons viverão.

Enquanto não temos perspectivas de liberdade física, vamos rezando o terço, como Maria, nossa Mãe, nos recomendou.


Suely 2021

Obs.: 18 de março de 2021 - A pandemia não terminou e já se apresenta a segunda onda com o vírus em mutação.l