domingo, 30 de setembro de 2018

Sua Excelência o Professor Link

Sua Excelência o Professor Link         (Da série Avó anos 2010)

Sempre apoiei as reivindicações dos professores, classe desde sempre preterida pelos governos e pelos donos de colégios particulares, com ínfimos salários, bem aquém do que merecem.

Hoje começo a me questionar sobre o atual desempenho desses já não tão abnegados profissionais.

Venho acompanhando o currículo escolar de minha neta, auxiliando-a em seus estudos e, de certo, auxiliando a mim também, como estimulante da memória.

Semana passada minha pequena parceira teria prova e pediu-me:

- Vó, estuda português comigo?

- Claro, filha! Qual a matéria?

- Análise de orações.

- Mole. Sempre fui "fera". Sei muito. - me gabei - Cadê o caderno?

- Não, vó, é um Estudo Dirigido. Temos que abrir o computador. Achei esquisito mas concordei:

- Vamos lá, então.

Computador aberto, entramos no primeiro link. E lá está:

ESTUDO DIRIGIDO - Matéria da prova: orações subordinadas 
- Entre no segundo link para saber o que são.

Entramos, então, no segundo link e "aprendemos" o que são orações subordinadas.

Ao final, mais um comando: - Agora entre no terceiro link para ler o texto

Abrimos o terceiro link e lemos o texto.

- Agora entre no quarto link para resolver as questões.

Bom, o processo seguiu com perguntas sobre adjuntos, complementos, voz passiva e tudo aquilo que nossos bons e dedicados antigos mestres nos ensinaram dia a dia, passo a passo, aumentando, a cada ano, o grau de dificuldade, com tudo anotado no caderno e, a cada dúvida, nos era por eles esclarecida. Sempre tínhamos uma gramática da língua portuguesa a nosso alcance para reforçar o que os saudosos professores ensinavam-nos em aula.

A partir daí comecei a perceber que em todas as matérias se usava esse processo de deixar ao computador a função nobre de transmitir conhecimentos, função inerente ao profissional qualificado para a nobre missão do ensino curricular.

Comecei a me questionar: que raios de professores esses? Os alunos se tornaram autodidatas! O que leva um professor a abrir mão do sagrado dever de, ele mesmo, praticar a sagrada ventura de ensinar aos alunos?

Por que os mandar à escola se tudo aprendem através de robôs, representados por links?

Ah! Saudade de meus queridos mestres! Lembro-me de cada um. Da maneira como se movimentavam pela sala, da maneira teatral de um, do outro que escrevia completando todo o quadro negro com a matéria, das terríveis arguições orais de matemática quando a gente costumava se esconder atrás do colega da frente para não ser chamado a arguir... Tudo ficou no passado

O hoje é um robô chamado link sem o suave perfume que nos envolvia quando as professoras passavam entre nossas carteiras.

Suely Domingues Canero

domingo, 23 de setembro de 2018

Sua Bênção, Mamãe.


Estava eu com uns oito anos e morava em uma rua que começa em uma praça onde está a Igreja de Santo Cristo dos Milagres.

Naquela época havia a tradição católica de se fazer o sinal da cruz às 18 horas; era a "Hora da Ave Maria", momento em que se orava e as crianças pediam a bênção aos adultos. Todos os dias soavam as badaladas dos sinos da igreja indicando o momento consagrado à Virgem Maria.

No número 44, bem em frente à nossa casa, morava sozinha uma senhora discreta que não era de conversas com os vizinhos.

Certo dia começaram a aparecer à janela de sua casa, à tardinha, duas crianças; uma menina de minha idade e um menino menorzinho. Era o único momento do dia em que os víamos. Era-nos um momento muito comovente.

Ali ficavam à espera do badalar dos sinos e, mal começavam os primeiros toques, as duas crianças, à janela, gritavam:

- Abença, vovó. Abença, papai

E, num grito bem alto e prolongado, num grito para ser ouvido nos céus:

- Abença, mamãe

Sim, a mãe fora para o céu. Os pequenos vieram morar com a avó.

Aquele momento sagrado do dia era esperado com ansiedade pelo casalzinho de netos. Momento de soltar do peito o grito de dor e saudade. Momento em que, acreditavam, poderiam conectar-se com a amada mãe, que lhes ouviria e atenderia ao pedido de que os abençoasse. 


Suely Domingues Canero

sábado, 15 de setembro de 2018



Do outro lado da linha

"Alô - atende o homem.
- Posso falar com D. Sonia? - perguntou a adolescente que ligara para o telefone celular da mãe, já estranhando não ouvir sua voz.
- D. Sonia acabou de falecer..."

A menina sentiu uma pontada no peito com o golpe da notícia assim, à queima roupa. Desligou, de impulso, o telefone. Não queria ouvir mais. Juntou as poucas forças que lhe restavam para telefonar à irmã mais velha antes de cair inerte no sofá.

- Carol, um homem falou que mamãe morreu.
- Quê? Como? - perguntava a voz trêmula de Carol
- Vem pra cá - gemeu a caçula.
- Estou indo.

Os minutos antes da chegada da primogênita à casa da mãe pareciam séculos a ambas.
Como moram próximas, Carol fez o percurso a pé e acelerava o passo, descompassado pela agonia que sentia em imaginar a mãe morta.

Finalmente chegou à casa e, ansiosa, quis saber da irmã o que acontecera. Cris, com muita dificuldade, contou que telefonara ao celular da mãe e uma voz masculina lhe dera a notícia.

- E você não perguntou mais nada?

Não, Cris não perguntou mais nada. Não queria confirmar. Não suportaria.

Não choravam. O choque as desnorteara.
Enquanto Cris se deixava ficar paralisada no sofá, Carol telefonava a outros membros da família para conseguir notícias. Ninguém atendia.

A falta de contato lhes sugeria que era verdadeira a notícia e que os familiares estariam envolvidos com providências sobre a morte da mãe. As meninas reagiam diferente. Cris se deixara ficar abatida no sofá e Carol  buscava notícias.

O tempo ia passando e do telefone fixo não vinha qualquer informação. A falta de contatos estava desesperadora. Nem conseguiam coragem para tornar a telefonar ao celular da mãe. 

Onde estariam todos?

Os olhos da caçula vagueavam pelo cômodo. De repente, o olhar cai na mesa de centro da sala e ela grita:

- Carol! Olha isto!

O objeto para onde apontava estivera ali o tempo todo mas o desespero não as deixara ver.
Jogado sobre a mesinha de centro estava o aparelho celular da mãe.

Compreenderam que a chamada telefônica de Cris não fora para a mãe e que foram vítimas de um trote cruel.

Então as explosões de emoções puderam vir à tona. As irmãs puseram-se a pular a gritar a chorar de alegria e alívio. Era uma ressurreição milagrosa para as filhas que haviam rezado e feito promessas para que não fosse verdadeira a triste notícia.

Ansiosas, olharam à janela no justo momento em que Sonia chegava ao prédio. O sofrimento foi substituído por súbita felicidade. Desejavam abraçá-la, senti-la. E gritaram:

- Mãe, sobe logo.

Sonia não entendeu porque sua chegada em casa foi efusivamente festejada com abraços carinhosos e declarações de amor. Alegre e surpresa perguntava o que acontecera.

- Onde você estava, mãe? Perguntavam as meninas.

Sem saber da agonia pela qual as filhas passaram, respondeu bem humorada:

- No cabeleireiro, ora!


Suely Domingues Canero





domingo, 9 de setembro de 2018

Procura-se na rede 


No ano de 2004 um site da internet deixou os pais preocupados. Nascia uma rede social e a garotada estava animada com a possibilidade de contatar amigos e fazer novas amizades através do tal site que virou "febre" : o Orkut.

O Orkut era filiado ao Google e, embora o alvo fosse os Estados Unidos, a maioria dos usuários eram do Brasil e da Índia.

Curiosa, em dezembro de 2005, resolvi fazer parte daquela rede. Assim como os jovens, também buscava contatos de antigos amigos de escola dos quais sentia saudade.

Em fevereiro de 2006 já possuía um cadastro grande de colegas do curso ginasial, hoje fundamental II, e, posteriormente, em dezembro de 2008, já começava a recuperar também contatos dos amigos da Universidade Rural RJ que resultou em grande encontro em dezembro de 2009. Acabei apaixonando-me pelo antes misterioso site.

No Orkut se podia criar comunidades virtuais, ambientes particulares para usuários que tinham interesses comuns. Então, em 2013, na comunidade dos moradores da Gávea, deparei-me com a postagem de uma menina, Dani, que me chamou atenção.

Dani procurava pela avó, Francisca, mãe de seu pai, que não a conhecia, pois se separaram quando ele ainda bebê e, acrescentou, naquela época a avó trabalhara em uma pensão naquele bairro.

Sensibilizei-me e, querendo ajudar a menina, parti a perguntar aos comerciantes mais antigos se conheciam D. Francisca. Mas não conheciam a senhora e, menos ainda, a pensão.

Dani dizia na postagem que morava em Alagoas. Fazia referência também ao restante da família que, segundo sabia, morava na Paraíba em uma fazenda chamada Boqueirão.

Como minha pesquisa na Gávea não teve sucesso e como Dani colocara o nome da avó por inteiro, resolvi consultar a internet mesmo sabendo que a possibilidade de êxito era mínima.

Para minha surpresa, entretanto, de imediato encontrei uma nota onde outra neta procurava, a pedido da avó, a família que morava em Boqueirão.

"Minha avó, Francisca de tal, procura sua família da Fazenda Boqueirão, Paraíba, de onde saiu jovem deixando lá seus pais e irmãos. Moramos na Bahia. Quem tiver informações favor enviar mensagem para o e.mail tal."

Era coincidência demais para não se tratar da mesma pessoa. Fiquei muito animada e, com essas informações, tomei duas providências: A primeira foi informar Dani do e.mail da suposta prima para que pudesse colocar o pai em contato com a suposta avó.

Mas a segunda providência, não contei a Dani.

Escrevi à Paraíba contando da possibilidade de ter encontrado D. Francisca, parenta deles que não viam há muito tempo. No envelope escrevi como destinatários todos os nomes divulgados pela neta, portadora do pedido da avó na internet. Depois escrevi o nome da fazenda, da cidade e do estado.

Aguardei o telefonema e guardei o segredo. Na carta enviara meu número de telefone.

Enquanto isso, Dani entrou em contato com a avó através do e.mail da prima. Confirmaram que D. Francisca era mesmo sua avó verdadeira. Contava-me da felicidade do pai em re-encontrar a mãe, da reunião que a família teve quando sua avó veio da Bahia a Alagoas passar uns dias com eles. Até enviou-me fotos. Essas duas famílias não sabiam que ainda lhes aguardavam mais dias felizes...

Demorou um tempo antes que eu recebesse telefonema da Paraíba, mas quando veio foi uma explosão. Do outro lado da linha vozes eufóricas queriam falar comigo. A custo consegui explicar que eu não era da família e que somente estava querendo ajudar a juntar os parentes. Quando me deram fôlego, consegui passar-lhes o telefone da Dani. 

A suposta avó já não era mais uma suposição. Era a certeza. 
E podiam comemorar junto às irmãs de D. Francisca, lá da Paraíba, de onde saíra tão novinha e não mais voltara.

Por algum tempo Dani ficou minha amiga no Orkut, porém o furacão Facebook chegou ao país estourando sucesso e tivemos que dar adeus, em 30 de setembro de 2014, ao site que tantas coisas boas trouxe à minha vida. Despedi-me dele com melancolia.  E tive que me render ao novo site de relacionamentos.

O nome Orkut é originado no projetista chefe, Orkut Büyükkökten, engenheiro do Google.
Face book foi colocado no ar também em  2004
Datas pesquisadas na internet

Suely Domingues Canero






domingo, 2 de setembro de 2018



Coincidências existem?                        (Da série: Parece cena de filme)

Às vezes vemos uma cena de filme e pensamos: "Ah, só mesmo em filme acontecem coincidências dessas."

Mas a realidade pode nos pregar peças e trazer-nos coincidências reais iguais as irreais cenas de filmes.

Morando na Gávea, tinha o privilégio de ir ao trabalho em um ônibus que me atendia bem, pois me deixava na Av. República do Paraguai, bem próximo à entrada da empresa onde trabalhava. 

Certo dia de calor intenso, coletivo sem ar condicionado, a viagem vinha igual aos outros dias.
Os passageiros usavam envelopes, jornais, qualquer coisa que service de abano.

À altura do hospital Instituto Fernandes Figueiras, no Flamengo, entrou uma senhora com um bebê ao colo. Era uma menina. Poucos segundos após a partida, a senhora começou a gritar desesperadamente:

- Minha filha! Minha filha!

Olhando para a menina vi que estava roxa. Todos gritavam ao motorista:

- Para! Para!

Até que o motorista entendesse o que acontecia, já havia passado uma boa distância do hospital onde a senhora subira ao ônibus. Finalmente parou o veículo e a passageira, desesperada, desceu à calçada.

Eu pensava que aquela não era a coisa certa a fazer. Como aquela pobre mãe faria para retornar ao hospital? Como superaria aquela distância? 

Instintivamente olhei pela janela e vi que passaria por nós uma patrulhinha da polícia.
Coloquei meio corpo fora da janela e fiz sinal para que parassem.
De imediato os policiais saíram do carro, armas em punho. Olharam para mim como a pedir mais informações. Só consegui apontar para a dianteira do ônibus, pois a aflita mãe já descera em busca do nada.

Em poucos segundos os policiais colocaram-nas na viatura e, atravessando o canteiro central da avenida, partiu de volta ao hospital, a toda velocidade.

Nunca soube o que aconteceu àquela menininha, mas o providencial aparecimento daquele carro de polícia naquele exato instante e o meu impulso de rápida intervenção dão-me a esperança de que tenha recebido a dádiva da vida.


Suely Domingues Canero