sábado, 22 de maio de 2021

 Chiva

Todos os dias saíam a passear. Ele sempre à frente e ela o seguia observando tudo que se passava ao redor.

Depois entravam na vila onde uma casa fora adaptada para restaurante. 

Quando ele acabava de almoçar ela o seguia, rumo a casa.

Comecei a me apaixonar por ela. Que olhar doce!  

Olhar que eu recebia todas as vezes em que nos encontrávamos.

Ele, ao contrário, não era lá de muitas conversas. Não sei seu nome e nunca nos falamos.

Mas sobre Chiva eu sabia tudo.

À medida em que o tempo foi passando as cenas se repetiam, porém Chiva andava mais devagar. Olhar baixo, sem interesse pelo que se passava à sua volta. Parecia doente. 

- "Ela está doente", confirmou-me a moça do balcão.

Meus carinhos se multiplicavam ao encontrá-la à espera dele, no portão do restaurante.

Certo dia vi-o almoçando sozinho.

- "Cadê Chiva?" perguntei à mesma moça do balcão.

- "Morreu". respondeu ela. Que baque recebi!

Hoje ele conserva os velhos hábitos. Sozinho. 

Olhamo-nos de relance ao cruzar a rua. Algo existe entre nós: a saudade de Chiva.


Homenagem à saudosa Cachorrinha Chiva.

Suely Domingues Canero maio/2021

 

sábado, 20 de março de 2021

 O Teatro das Cantigas de Roda

Quanto mais brincávamos de "Roda" na infância maior a influência recebida para o palco teatral.

Esta foi minha conclusão há poucos dias quando, cantarolando uma musiquinha das brincadeiras infantis, percebi que fazíamos toda uma apresentação teatral.

Cantava eu enquanto as imagens vinham do passado. E me vi criança.

- "Quero me casar com vossa filha genuflê, genuflá..."  E era feito o genuflexo dobrando-se o joelho`a frente da criança que representava o pai.

 Ao puxar a memória, não foi difícil lembrar-me de outras canções de roda e percebi que a quase totalidade era formada de diálogos e interpretações.

Em "Ciranda, Cirandinha", temos jogo de corpo, cirandando e contracirandando. Tem uma história completa e tem a interpretação final com a criança recitando e puxando outro participante  para entrar no jogo.

- "Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar,/Vamos dar a meia volta, volta e meia vamos dar.../ Por isso Mariazinha entre dentro desta roda,/Diga um verso bem bonito, diga adeus e vá embora". Tudo coreografado espontaneamente.

Quem não lembra da "Linda Rosa Juvenil"? Outra história completa, cantada e interpretada pelas crianças? Assim também: "Onde Está a Margarida"? , "A Carrocinha Pegou Três Cachorros de uma vez", "Fui no Tororó",  "De Abóbora faz Melão", "Vamos Passear no Bosque Enquanto Seu Lobo Não Vem"

Sempre soube ter herdado o gosto pelo palco de minha mãe que chegou a ser atriz mambembe, pois saía em grupo para apresentarem-se em clubes de cidadezinhas do interior. Mas percebo agora que ela e eu tivemos a melhor influência teatral que poderíamos ter. As cantigas de roda, seus diálogos, suas coreografias. 

Brincando de "Roda" aprendemos na  escola da rua que nos ensinou as interpretações das cantigas  de roda.


Suely D. Canero - março 2021


domingo, 21 de fevereiro de 2021

 Tudo acaba

Pouco falo de meu avô materno, Arthur. Talvez porque as lembranças que tenho dele sejam repetitivas.

Meu avô não era de conversas com crianças, estava sempre rodeado de adultos, pitando seu charuto.

Eu só falava com ele para pedir o refrigerante Grapette e ele, observando minha garrafinha vazia, interrompia a conversa dos grandes,  para me perguntar se eu queria outro. E me dava quantas mais eu quisesse.

Outro dia me peguei pensando mais em meu avô. Transportei-me até um de meus aniversários infantis quando parentes vieram em casa para as comemorações, que não passaram de uma bela mesa com bolo,  confeitado por minha mãe,  docinhos e guaraná, pois ninguém além do meu avô lembrar-se-ia de me comprar um Grapette.

Vovô Arthur me deu um curioso presente, recém lançado no mercado, que me encantou. Era uma caneta com quatro pontas, cada qual com uma cor diferente. A cada clique mudava a cor da ponta.

Eu, fascinada com o presente, examinava a engenhoca, ansiosa para mostrá-la às amigas da escola. 

Examinei por boas horas a caneta. Ao fim de um tempo, cheguei a meu avô e perguntei:

- Vô, esta caneta dura a vida toda? Ela acaba?

Ele, com leve sorriso, respondeu:

- Nada dura para sempre, querida, tudo acaba. 

Esse foi meu primeiro contato com a finitude da vida.

Suely - fev 2021