domingo, 26 de agosto de 2018



Querida Arlinda

Arlinda era uma negra forte. Morava na favela e era empregada doméstica. 
Excelente cozinheira e ótima no trato com crianças.
Ganhava pouco e seu lar, podia-se dizer, era o emprego, pois as folgas eram quinzenais.

Quando, sem estar casada, emprenhou, contou à patroa. Não sabia se seria aceita com uma criança. Mas foi.

Empregada e patroa eram jovens. O filho de Arlinda, o quarto menino a chegar a casa, foi bem recebido.

A vida seguia. Arlinda tomou amor pelas crianças. O filho, tratado igual aos dos patrões. 

Arlinda amava aquela família. Incansável, servia sozinha grandes jantares nos dias comemorativos. Tinha ciúme de sua cozinha. 

Era a rainha da casa, depois da patroa. As outras empregadas que se comportassem,
senão lhes aplicava descomposturas.

As crianças passaram pela adolescência e ficaram adultas. Cresceram amando Arlinda e 
recebendo seu afeto. Vieram os netos. O tempo passando e ela ali permanecendo. A patroa perdeu um filho em acidente e Arlinda perdeu o seu para doença.

O chefe da família faleceu e os dois meninos da patroa casaram-se e saíram de casa.

Ficaram as duas sozinhas no casarão, passados 50 anos. Dormem no mesmo quarto para se ajudarem.

Duas velhas rabugentas que brigam. 
A patroa é braba, mas Arlinda a ama. Irmãs! Almas gêmeas!

Mais uma briga... A negra sai da sala e vai para seu quarto cantar. E se deixa ficar um bom tempo, de pé, apoiada na cômoda.

O criado vem chamá-la para o almoço. Uma lágrima rola em sua face, mas abre um sorriso.

Com dificuldade, as duas, patroa e a agora amiga, apoiadas nas bengalas, sentam-se à mesa.

A patroa percebe o olhar amoroso de Arlinda e lhe sorri.
E tudo fica igual porque o amor, de cinquenta anos, mostra-se mais forte. 

E amanhã... Amanhã será só mais um dia.



(Homenagem a uma mulher que muito admiro pela fibra e pela doçura)
Suely Domingues Canero




domingo, 19 de agosto de 2018

Gente amiga,
Hoje não postarei texto meu. Postarei a letra de uma música gravada por Luan Santana.
Essa letra me toca muito e fico admirada de como um rapaz tão jovem conseguiu inspiração para gravá-la.

"Te Esperando

Mesmo que você não caia na minha cantada
Mesmo que você conheça outro cara
Na fila de um banco
Um tal de Fernando
Um lance assim,
Sem graça

Mesmo que vocês fiquem sem se gostar
Mesmo que vocês casem sem se amar
E depois de seis meses
Um olhe pro outro
E aí, pois é,
Sei lá

Mesmo que você suporte este casamento
Por causa dos filhos, por muito tempo
Dez, vinte, trinta anos
Até se assustar com os seus cabelos brancos

Um dia vai sentar numa cadeira de balanço
Vai lembrar do tempo em que tinha vinte anos
Vai lembrar de mim e se perguntar
Por onde esse cara deve estar?

E eu vou estar
Te esperando
Nem que já esteja velhinha gagá
Com noventa, viúva, sozinha
Não vou me importar
Vou ligar, te chamar pra sair,
Namorar no sofá
Nem que seja além dessa vida
Eu vou estar
Te esperando"

Autor: Bruno Kaliman

sábado, 11 de agosto de 2018


Além da Boemia

Já aos treze anos, com a morte repentina do pai, Cesário se viu dividindo a chefia da família, de sete crianças, com a mãe.

Não se sabe em que momento o menino alto e magro transformou-se em um dos homens mais elegantes do país.

Sempre bem vestido, geralmente em ternos de panamá, cabelos rigorosamente penteados com gel fixador, sem um fio fora do lugar, e deliciosamente perfumado. O aroma misturava perfume e cigarro, numa combinação máscula.

Não poderia passar despercebido pelas moçoilas que lhe lançavam suaves suspiros e lânguidos olhares.

Era goalkeeper do time que fundou: o Atília Football Club. Ali conheceu a moça mais bonita que seus olhos já haviam visto; Mercedes, a madrinha do time.
Logo apaixonaram-se e casaram-se.

Mas Cesário era boêmio e Mercedes ciumenta.

As brigas eram constantes. Lágrimas corriam pelas faces da esposa ao lavar as manchas de batom nos colarinhos das camisas do marido.

Cesário queria chegar a casa e sentir na mulher o calor dos braços daquelas que encontrava na rua. Mercedes queria um marido que sentasse com ela à mesa do jantar. E brigavam.

Por seis anos brigaram e fizeram as pazes, antes da separação.
Chegara o fim das explosões, das lágrimas e das juras mentirosas.

Cesário partiu levando tudo que era seu. Menos um casaco, que permaneceu pendurado em um gancho na parede.

Enquanto ali ficou, Mercedes esperou sua volta.

Um dia ele veio, abriu a porta com a própria chave e, sem nada dizer, pegou o casaco e levou-o, saindo de vez do seu caminho.



O texto faz duas referências a duas das músicas temas dos personagens: Brasa – de Lupicínio Rodrigues e Saia do Caminho - de Custódio Mesquita e Evaldo Ruy.
Foto do time do Atília Football Club
Suely Domingues


domingo, 5 de agosto de 2018

Desafio


Denise caminhava olhando as vitrines da Rua do Ouvidor, no Centro do Rio.
Acabara de almoçar e curtia os minutos que ainda lhe restavam para voltar ao trabalho.

Era moça bonita, de baixa estatura. 
Vaidosa, aproveitou seu reflexo na vitrine para ajeitar os cabelos.

Ao virar-se esbarrou, sem querer, em uma mulher que passava na mesma calçada estreita.

- Desculpe - pediu Denise.

A criatura olhou-a raivosa e passou a agredir verbalmente Denise que ficou muito assustada, pois a tal mulher, de voz rouca e grande porte, cada vez mais se aproximava dela.

- Desculpe - repetiu.

Começou a juntar gente ao redor. Denise olhava em volta para ver se achava uma brecha escapatória.

A mulher aos poucos se aproximava dela, dedo em riste, já cutucando seu colo com o indicador, não se importando com o pedido de desculpas da já quase agredida.

- Por que não olha onde anda? - gritava a grandalhona

O pessoal que assistia a cena nada fazia: parecia divertir-se. O desespero foi tomando conta da baixinha que, já fora de seu juízo, empurrou para longe aquela massa disforme que estava à sua frente. 

A mulher desequilibrou-se e caiu de costas no duro piso.

- Ah! Vou te pegar, sua estúpida! - esbravejava.

Apavorada, Denise aproveitou a situação para furar o bloqueio humano e fugir, sob aplausos.
Quando já estava a dois quarteirões de distância, ouviu as vaias à sua algoz cujos impropérios dava para ouvir ao longe.

- Cadê ela? Ah! se a pego...

Denise estava envergonhada por passar aqueles momentos de alta tensão e, ainda sem saber como, conseguiu forças para caminhar rápido e livrar-se daquele cenário.
.
Ao entrar no escritório seus colegas, que também chegavam do almoço, comentavam o caso que já se havia propagado. Denise, então refeita, entrou no assunto dizendo:

- É, gente, eu soube disso. Parece que uma baixinha derrubou uma gorila.

E os amigos explodiram em gargalhadas da piada, sem imaginar que a colega era uma das personagens que protagonizaram a cena.

Denise disfarçou o sorriso e foi tomar seu posto de trabalho mantendo segredo sobre a aventura pela qual passara.



(este texto é resultado de um desafio proposto em curso livre de português - Com ele homenageio a saudosa amiga Zely)
Suely Domingues Canero.