domingo, 21 de outubro de 2018

Sonho? Verdade?


As lembranças insistiam em me incomodar. Não adiantava tentar desviá-las do pensamento porque ele teimava em voltar ao passado. A saudade batia feio. Tentava me concentrar na carregada agenda que teria que cumprir, mas logo já estava longe, no Hotel Columbia, da Timbiras, onde sempre nos hospedávamos.  

Ora me via entrando no Colúmbia, ora aguardando o semáforo da São João com Ipiranga, sempre ao lado dele.

A vontade era a de voltar no tempo e viver tudo de novo. 

Deixar o pensamento solto, jantar no Rubaiyat, almoçar no Bar Brahma, andar na Paulista, visitar a Rua Augusta, onde Roberto Carlos entrava a 120 por hora.

Tanta coisa a se fazer em um fim-de-semana! Eram intensos nossos fins-de-semana.

Agora a saudade viera para remexer isso tudo, depois de tanto tempo...

Tantos anos se passaram desde a despedida e estou vivendo tudo de novo hoje, agora. Meus pensamentos me colocam lá, no passado. Estamos na esquina da São João para atravessar a rua e tomar um café.

Fazia sempre frio e aquele café quentinho, à noite, aquecia-nos o corpo e a alma.

A saudade está rondando a mente e apertando o peito. 

Começo a sentir intensa vontade de ir àquela esquina, àquele hotel. Ainda existiria?

No computador, à minha frente, o site mostra que o Columbia sim, ainda está lá, na Timbiras, igualzinho ao que era. Na tela as fotos mostram o interior dos apartamentos, tão conhecidos meus.

Interrompo a pesquisa e recosto-me no sofá para relaxar um pouco; só um pouco...

Vai crescendo a atração que SAMPA me impõe. A certeza vai tomando conta da dúvida. 

Já me encontro  pegando a pequena mala onde coloco poucas coisas, poucas mudas de roupa. Pegarei o ônibus das 18 horas na Rodoviária do Rio, como sempre fazia.

Pronto. Comprei dois assentos para que ninguém viajasse a meu lado. Encostei-me ao vidro da janela, com o rosto bem colado para ver o céu, a lua e as estrelas. 
Que sensação deliciosa! Se estava indo ao encontro do passado então teria que fazer tudo igualzinho.

Por volta de meia-noite cheguei à Rodoviária de São Paulo. O Colúmbia era perto dali, mas fazia-se necessário o táxi.

Cheguei. Deixei-me ficar na calçada por algum tempo e admirei a fachada do Hotel. Entrei devagar no grande hall. Queria saborear cada segundo. Olhava tudo e tentava reconhecer detalhes.

Eu estava no Columbia!

Apenas um jovem atendia por trás do balcão. Do lado de cá um senhor, debruçado sobre uma folha de papel, cumpria a formalidade da hospedagem.

Ao soar o meu "boa noite" ao recepcionista, o senhor virou-se rapidamente em minha direção.

- Jorge! - Balbuciei, incrédula.

Ficamos assim, imóveis, por alguns segundos até que, num impulso, nos lançamos para o melhor dos abraços: silencioso, apertado, demorado.

Quando conseguimos falar, Jorge contou-me do forte sentimento que também o impulsionara ao Columbia. Aquela noite seria curta para tudo que tínhamos a dizer.

Antes de subirmos ao apartamento, convidei-o ao famoso cruzamento das tradicionais ruas de SAMPA para o ritual do cafezinho, sob a garoa paulista.


domingo, 14 de outubro de 2018

A Maior Cantora do Brasil


A televisão chegou ao Brasil trazida por Assis Chateaubriand e começou a ser comercializada em 1950, porém poucas pessoas tinham poder aquisitivo para comprar o aparelho e, assim, era comum o proprietário de um desses deixar a janela da sala aberta para que os vizinhos pudessem assistir aos programas transmitidos na sua TV. Então as estações de rádio, o cinema e o circo ainda eram os principais meios de divertimento dos brasileiros.

Havia um cast de cantores e compositores famosos, alguns, poderíamos dizer, já cantando a sofrência, nome com que são chamadas hoje as músicas românticas e sofridas e que, na época, eram o samba-canção e o bolero.

O samba e as marchinhas de Carnaval faziam grande sucesso. Duas cantoras destacavam-se pela rivalidade entre suas fãs; Emilinha Borba e Marlene. Os animadores de programas de auditório Manoel Barcelos e César de Alencar aproveitavam o antagonismo delas para provocar aumento de audiência.

Chiquita bacana lá da Martinica se veste com a casca de banana nanica, cantava Emilinha enquanto Marlene entoava Lata d'água na cabeça, lá vai Maria... As fãs brigavam, enlouqueciam e gritavam para ambas: - É a maior!

Neste cenário surge uma nova cantora cuja maneira de cantar se assemelhava à da já consagrada cantora Dalva de Oliveira, a Rainha da Voz. No início da década de 1950 Angela Maria estourava com seus sambas-canções. Ela havia sido contratada pela Rádio Mayrink Veiga. Era sucesso após sucesso: Escuta, Recusa, Estava Escrito, Orgulho, Vida de Bailarina eram alguns títulos de suas gravações.

Angela Maria arrebatava logo à primeira audição. Eu ficava encantada com a voz de Angela, sabia as letras de todas as músicas, comprava os LPs e só tinha nove anos de idade. Colecionava a Revista do Rádio e a Radiolândia e tudo que se referia à cantora.

Em certa tarde de uma quarta-feira, fui com uma amiga à rádio Mayrink Veiga assistir ao programa onde Angela, a Sapoti, cantaria. Estava super empolgada. Sentamo-nos no auditório  e, aos primeiros acordes, me vi gritando - É a maior! - como faziam as fãs de Marlene e Emilinha.

Durante alguns anos pude ouvir seus discos a qualquer momento, mas... 

Nossa vida familiar sofreu grande mudança e a vitrola precisou ser vendida levando com ela as alegrias e o laser de uma adolescente solitária. Uma sensação de luto me envolveu então e nunca mais comprei long-plays de Angela. 
...
Descanse em paz, Abelim Maria, você nos presenteou com linda voz e interpretações magníficas durante sua vida inteira. Foi de grande importância o fato de você, mesmo escondida dos pais, participar dos programas de calouros, levando todos os prêmios até ser contratada pela Mayrink, estourar para o mundo e se transformar, por eleição popular, na eterna Rainha do Rádio e na Maior Cantora do Brasil.
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Notas:
.Getúlio Vargas, então presidente da República, apelidou-a "Sapoti"
.LP ou Long-play foi o disco de 33 e 1/3 rotações por minuto que substituiu o vinil de 78 rpmEra comum à época os animadores de auditório darem títulos aos cantores e cantoras. Francisco Alves era o Rei da Voz, Orlando Silva, o Cantor das Multidões, Silvio Caldas, o Caboclinho Querido... Era também comum os artistas mudarem o próprio nome por um mais adequado à carreira.
.Os apresentadores de programas eram chamados de animadores de auditório.

Suely Domingues Canero

domingo, 7 de outubro de 2018

Minha amiga Zó era uma "figura"

Nos velhos tempos da datilografia o final do texto trazia em caixa alta as iniciais do autor do trabalho e em caixa baixa as iniciais de quem o havia datilografado. Assim surgiu o apelido de minha amiga Zely Oliveira que marcava seu trabalho com suas iniciais.

Zely invadia minha vida a qualquer hora do dia ou da noite para contar um desabafo ou uma cena engraçada que se passasse com ela ou com outra pessoa.

Certa vez ligou-me às duas da madrugada porque se sentia angustiada. Conversamos um pouco e só quando desligou o telefone é que percebeu que não eram somente onze horas, como pensara.

Zely costumava dizer: "Gosto de contar as coisas para você porque só você acha graça". Ríamos de tudo e ríamos tanto que riam também os cobradores dos ônibus que nos levava a Copacabana, no final do expediente de trabalho.

Hoje, como em tantos outros dias, lembrei-me de minha amiga e, mais uma vez, dei boas risadas... sozinha.

Zely era muito desligada. Certa vez, passando pela Rua do Ouvidor viu uma cena onde duas mulheres brigavam por causa do marido de uma delas. Brigavam de se atracar. O público assistia, indiferente, a cena. Zely não contou tempo; segurou a que parecia esposa e desabafou: 
- "Não briga, minha filha, eu já passei por isso..." E foi assim que estragou a cena do filme Copacabana me Engana.

Havia coisas que, parecia, eram atraídas por Zely. Certo dia, em caminho para o Banco em que trabalhávamos, resolveu jogar no "bicho". Daí começou uma batida policial e o bicheiro agarrou-a pelo braço e saiu carregando-a, correndo pela Avenida Rio Banco. Ela, salto alto, dizia: "Me solta, moço, meu marido é tira". E o homem respondia: "Não solto; a senhora ainda não me pagou".

Quando Zó me contava essas cenas, ríamos de chorar enquanto nossos colegas apenas esboçavam um risinho de canto de lábios. Muitas vezes ela mal começava a contar um caso e não conseguia ir até o final da história pois gargalhávamos.

A cena do ceguinho não tem graça, levando em conta a deficiência, porém por mais que tentássemos, não conseguíamos segurar o riso. Frequentava o Banco um deficiente visual, que chamávamos de ceguinho mesmo, que adorava ser ajudado pelo sexo feminino. Ele usava uma bengala desmontável. Naquele dia Zely e o ceguinho, aproveitando o sinal aberto aos pedestres, atravessavam a mesma Rio Branco quando um homem grandalhão que vinha em sentido oposto, sem querer, tropeçou na bengala do ceguinho. O que aconteceu foi terrível! A bengala encolheu e o pobre ceguinho, magrinho, saiu "catando cavaco". E o grandalhão todo atrapalhado a querer evitar que o ceguinho caísse. Não tem graça, mas o conjunto da cena nos fez rir muito.

Ah, Zó, que saudade dessas maluquices nossas! Que saudade de sua invasão na minha vida, da sua falta de cerimônia quando me pedia ajuda, do seu socorro quando era eu que pedia ajuda. 

Ai, cara Zó, saudade de quando você mudou de departamento e seus colegas de trabalho, saudosos, brincavam dizendo: - "Voooolta, Zó"


Nota: Máquina datilográfica, precursora do teclado do computador
Caixa alta: LETRAS EM MAIÚSCULA
XXX/xxx - Identificava quem elaborou o texto e quem datilografou.

Suely Domingues Canero.